sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Artigos Completos VII Congresso de História da Região dos Lagos

Comunicações do Curso de História



Estamos postando os primeiros textos do VII Congresso de História da Região dos Lagos. Este evento aconteceu nos dias 16, 17 e 18 de novembro no Auditório Principal da Universidade Veiga de Almeida, Campus Cabo Frio. Aproveitem a leitura e façam suas observações. Aliás envie seu texto, sua sugestão, suas opiniões e façamos deste espaço um local de circulação de idéias e ideais.



Grande abraço!



Guilherme Guaral



Coordenador do Curso de História



UVA - Cabo Frio

Artigos Completos VII Congresso de História da Região dos Lagos

III


Nem melhor, nem pior, apenas uma Escola diferente: Os Acadêmicos do Salgueiro e as transformações estéticas e ideológicas na cultura brasileira (1959-1972)

Guilherme José Motta Faria[1]
O início dos anos sessenta, na história do carnaval carioca representou a chegada de uma fase de transformações ideológicas e estéticas. A ousadia coube a GRES Acadêmicos do Salgueiro, que sintetizou suas ambições artísticas e culturais na frase do seu presidente, Nelson Andrade “Nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente”.
Ressaltando personagens em sua maioria negros e mulatos, o Salgueiro trouxe para a linguagem visual e discursiva dos desfiles toda uma gama de representações que exaltavam a origem africana desses personagens e a própria discussão sobre a participação dos negros na formação cultural do Brasil.
A seqüência de desfiles entre 1959 e 1971 revelou esse fulgor de criatividade, de descobertas e de militância tendo o negro e suas peculiaridade, suas mazelas e suas alegrias amplificadas nos sambas e nos desfiles realizados pela escola. Foi a partir do GRES Salgueiro que a temática negra entrou no rol dos enredos possíveis.
Palavras Chave: GRES Salgueiro, transformações estéticas, ideologia, africanidade, cultura brasileira e historiografia.

Arte e Política na Academia do samba
Os desfiles das Escolas de Samba foram se tornando com o passar do tempo, espetáculos grandiosos, que despertaram e continuam a despertar o interesse de grande parte da população brasileira. Fatos curiosos, pitorescos, personagens e o contexto histórico embasando cada enredo, nos permitem passar em “revista” os acontecimentos importantes, as idéias, tendências artísticas e comportamentais que influenciaram e continuam a influenciar nosso panorama cultural.
A história das escolas de samba pode ser trabalhada como chave de compreensão do todo histórico. Os aportes em seus enredos, o trabalho das comunidades, a repercussão dos desfiles, enfim a sua existência e a relação que se estabelece com os poderes públicos (municipal, estadual e federal) nos possibilitam construir a História política contemporânea do país nesse entrelaçar de informações e sensações, onde a plasticidade e, sobretudo o ritmo sincopado do samba-enredo serve de fonte de inspiração para a narrativa histórica e fonte de pesquisa, pois suas letras, a sinopse dos enredos, a materialização das idéias em alegorias e fantasias não devem ser descartados como possibilidade de material a ser analisado.
Revisitar um momento riquíssimo de acontecimentos e debates, onde o ambiente cultural estava extremamente revitalizado é um grande desafio intelectual que visa acrescentar novas abordagens à historiografia sobre os anos 1960 em nosso país. Período intenso da vida política brasileira, onde nos mais diversos segmentos culturais os artistas eram convidados a dar suas contribuições estéticas e ideológicas na formação social do povo brasileiro, externalizando anseios e problematizações.
Sendo assim, a nossa pesquisa, se valendo da relação constante e dialética entre os conceitos de Cultura, Estado, nacionalismo, ideologia e arte engajada, a luz das práticas culturais que eram vivenciadas naquele momento, me permite juntar as peças e reconstruir a história Política e Social do Brasil que nos é contemporânea, a partir do universo das escolas de samba.
Mediados pela inter-relação de um Estado em processo de transformação radical, desde os ventos finais do desenvolvimentismo de JK, da euforia e decepção do fenômeno Jânio, das incertezas do Governo de João Goulart ao desfecho do Golpe militar com seus generais-presidente, os anos 1960 encarnaram de maneira quase holística seu sentido mais profundo da busca de uma nova forma de fazer política tendo a cultura como campo fecundo.
Dessa forma, durante o período estudado ocorreu extensa produção de elementos e bens culturais, que com o imbricamento das questões políticas gerou vários desdobramentos nas nossas práticas culturais, ora de contestação, ora de enaltecimento de ideologias que se contrapunham no cotidiano. Era preciso ter opinião e as artes, de maneira geral deveriam abrir caminhos para essas escolhas e para a formação constante de quadros políticos.
Assim sendo, a partir da análise, tendo o GRES Acadêmicos do Salgueiro como objeto central pode estabelecer a trajetória de uma agremiação, que conectada ao momento vivido se mostrou também engajada. Revolucionou a ideologia e a estética dos enredos abrindo novo campo de discussões acerca da História brasileira e sua interpretação. Discutiram a causa racial, a valorização da ascendência africana e as reivindicações feministas ressaltando mulheres marcantes e até aquele momento esquecidas pela nossa cultura, através de sambas, fantasias e alegorias em desfiles marcantes e amplamente registrados na imprensa carioca.
Com efeito, essas práticas culturais, citadas acima, foram se constituindo em marcas incorporadas ao imaginário e ao cotidiano das demais escolas de samba, da problematização de uma consciência crítica na historiografia, na constituição dos pólos de discussão de gênero, classe e cor que são visíveis até os dias atuais, influenciando nossa maneira de compreender o mundo que nos cerca.
No contexto cultural dos anos 60, o ambiente do carnaval carioca vivia uma constante ação de circularidade cultural, onde se buscava representar na avenida os símbolos, oriundos de valores que vinham sendo “pregados” pelo Estado. Por outro lado o GRES Salgueiro demonstra um desejo de ampliar o leque de discussões e questionar a própria ascensão social por parte dos sambistas e sua tentativa freqüente de demarcar seu espaço numa atitude concreta, pautada no intuito de se afirmar como agentes culturais e, sobretudo, como cidadãos na sociedade brasileira.
O conceito de circularidade cultural[2] demonstra como as idéias e os valores podem ser absorvidos e se metamorfosear, num ciclo sempre renovável, mantendo as características dos grupos sociais. Partilhar manifestações, fundadoras de uma cultura geral, que ganha conotações diversas, não significa abrir mão de suas especificidades, nem mesmo de uma igualdade social. É, portanto, possível conviver com as diferenças e usufruir as manifestações culturais que são engendradas em outras esferas e espaços sociais, possibilitando, para cada classe, uma gama de práticas diferenciadas, resultando em representações próprias para cada uma delas.
Tendo como objeto de pesquisa a cultura produzida por um dos segmentos das classes populares, a análise se encaminha para ter como fundamentos teóricos os modelos trabalhados pelos historiadores Carlo Ginzburg e Mikail Bakthin[3], compreendendo que as esferas sociais produzem cultura, não dissociadas do todo e sim interagindo, captando, apropriando-se de todos os elementos e estabelecendo com peculiaridades a sua visão de mundo.
Nem melhor, nem pior, apenas uma Escola diferente: Os Acadêmicos do Salgueiro e as transformações estéticas e ideológicas na cultura brasileira (1959-1971)

Na história do carnaval carioca, após a fase de estruturação nos anos 1930/40, houve a da consolidação entre o final dos anos 1940 início dos anos sessenta. A terceira fase foi a da transformação ideológica e estética percebida pela abertura que se verificou com novos temas servindo de enredo. A aparente ousadia coube a uma jovem escola, fundada em 1953, a partir de uma fusão entre três escolas de pequeno porte do Morro do Salgueiro, localizado no bairro da Tijuca[4].
A história dos desfiles e do próprio carnaval carioca ganharia um capítulo especial com as apresentações dos Acadêmicos do Salgueiro, que sintetizaram suas ambições estéticas e ideológicas na famosa frase de um de seus presidentes, Nelson Andrade, e que acabou se tornando a marca registrada da história da agremiação: Nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente.
De fato essa diferença foi uma das características fundamentais da escola de samba tijucana, sobretudo quando ela se tornou a plataforma de lançamento de histórias pouco conhecidas pelo público em geral. Ressaltando personagens em sua maioria negros e mulatos, o Salgueiro acrescentou a linguagem visual e discursiva, pertinente aos desfiles, toda uma gama de representações que exaltavam a origem africana desses personagens e da ancestralidade que a própria festa carnavalesca, exacerbada nas escolas de samba representava.
Dessa forma, o Salgueiro trouxe para o centro das discussões as temáticas etnográficas, raciais e o debate em si sobre a participação dos negros na formação sócio-cultural do Brasil. A seqüência de desfiles entre 1959 e 1971 revela esse fulgor de criatividade, de descobertas e de militância, tendo o negro e suas peculiaridades, suas mazelas e suas alegrias amplificadas nos sambas e nos desfiles realizados pela escola.
Foi a partir do Salgueiro que a temática negra entrou no rol dos enredos possíveis. Aparentemente essa constatação pode parecer um grande paradoxo, pois essa manifestação carnavalesca nitidamente teve seu nascedouro nos redutos dos bairros do subúrbio e dos morros cariocas, tendo predominantemente como fundadores e primeiros agentes de legitimação, indivíduos negros e mulatos.
A origem do samba, ao longo da trajetória inicial das escolas de samba não era retratada diretamente e quando essa gênese era retratada chegaram a utilizar uma versão que dizia que o ritmo havia nascido entre os índios[5]. Atraindo para si profissionais ligados a Escola Nacional de Belas Artes, o Salgueiro inaugurou uma parceria diferente no mundo das escolas de samba, mesclando uma visão baseada na formação clássica e acadêmica com o saber e as produções tidas como da cultura popular. No mundo carnavalesco, entretanto, essa aproximação não era uma total novidade, pois os ranchos e as grandes sociedades tiveram em seus momentos de maior expressão essa forma associativa de produção de enredos, alegorias e fantasias[6].
Entretanto, esse novo momento de aproximação, permitiu que na esfera das escolas de samba, manifestação que nos anos 60 estava se tornando hegemônica no carnaval carioca, acontecesse a explosão do fenômeno da temática negra, sua carga de problematização e conseqüentemente a busca da auto-afirmação dentro do contexto cultural brasileiro. Fernando Pamplona, professor da Escola Nacional de Belas Artes foi a principal figura que sintetizou esse encontro entre esferas de produção cultural, propondo os temas e fazendo uma “catequese” junto aos moradores para que aceitassem vestir fantasias de tribos africanas em substituição das tradicionais vestimentas de nobres com suas perucas, sapatos e casacas.
Pamplona confessa que o início dessa trajetória foi turbulento, mas os resultados e, sobretudo a repercussão que os desfiles do Salgueiro foram atingindo permitiram que a comunidade do morro tijucano e de simpatizantes da classe média da zona sul carioca se achegassem cada vez mais à agremiação.
Interessante perceber que essa parceria começou com Pamplona na espinhosa missão de ser jurado no desfile em 1959, onde se encantou com a apresentação do Salgueiro que havia trazido para organizar seu carnaval dois artistas plásticos, o casal Dirceu e Marie Louise Nery.O recorte histórico que escolhi para esse Projeto de pesquisa se inicia com essa parceria e conseqüente desfile. Com o enredo Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, tratando da obra do pintor Jean Baptiste Debret em sua estadia no Brasil e especificamente na cidade do Rio de Janeiro. O artista retratou o cotidiano e as diversas manifestações culturais tendo os negros em sua condição de escravos como protagonistas. A representação das cenas retratadas por Debret, formando quadros vivos na avenida impressionou o jurado Pamplona. O desfile como um todo foi de uma plasticidade intensa, onde predominaram os componentes negros da comunidade do morro do Salgueiro[7].Selada a parceria, o primeiro enredo proposto por Pamplona foi paradigmático em relação ao trabalho que ele desenvolveu na escola, escolhendo exaltar a figura de Zumbi dos Palmares com o enredo Quilombo dos Palmares. Para o desfile de 1960, o artista convidou seu colega do departamento de cenografia do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Arlindo Rodrigues para auxiliá-lo, configurando uma parceria que renderia muitos frutos para o Salgueiro, para o carnaval carioca e para a cultura brasileira[8].Em 1961 com Vida e obra de Aleijadinho, em 1962 com O Descobrimento do Brasil, em 1963 com Xica da Silva e com Chico Rei no carnaval de 1964 o Salgueiro revolucionou os desfiles das escolas de samba trazendo para o centro do evento a cultura brasileira em estado bruto com personagens quase desconhecidos do grande público, mas que encarnava de forma profunda a brasilidade de negros e mulatos.Contando essas histórias de vida onde a superação era uma das maiores virtudes, a ação afirmativa do Salgueiro deu início a um processo de oxigenação das idéias no carnaval através do fenômeno da circularidade cultural que a partir dos seus desfiles fez circular por diversas camadas sociais esses personagens, suas idéias e práticas culturais. Isso se verifica, pois não só o público que assistia aos desfiles e as comunidades que acompanhavam os ensaios se apropriaram destes temas. Os meios de comunicação de massas, o rádio, as revistas de grande circulação e as iniciantes emissoras de tv passaram a se interessar pelo espetáculo das escolas de samba e sua cobertura possibilitou umas abrangências bastante ampliadas das suas ações e temáticas.Se no trabalho anterior sobre a GRES[9] Portela[10] pude constatar que as escolas se apropriavam dos discursos e representações sociais produzidas pelo Estado, pela Imprensa e através do fenômeno da circularidade cultural transformavam essas informações e conceitos em sambas, alegorias e fantasias, com o Salgueiro o processo se inverteu. A irradiação ideológica e estética que trouxe a cena novos personagens, a partir de novas interpretações da historiografia oficial, se tornaram visíveis e reluzentes em diversos segmentos culturais no país. No ambiente teatral, nos filmes, na escultura, na moda, na música popular, na literatura, enfim, em diversos campos da cultura os temas abordados pelo Salgueiro foram sendo apropriados e ampliados.O maior exemplo da afirmativa acima foi a montagem do espetáculo Arena Conta Zumbi em 1965 pelo grupo Teatro de Arena com textos de Gianfrancesco Guarnieri, direção de Augusto Boal e músicas de Edu Lobo. A montagem estreou cinco anos após o desfile do Salgueiro e mesmo que as pesquisas tenham caminhado em direções opostas é inegável que a proposta temática da escola da Tijuca tenha inspirado as letras e melodias do compositor carioca Edu Lobo. O filme Ganga Zumba de Cacá Diegues de 1963, portanto anterior ao espetáculo teatral foi outra obra de arte que sofreu o impacto da pesquisa temática do desfile do Salgueiro.Outro fato relevante é que as próprias escolas de samba, a partir da abertura temática do Salgueiro passaram a tratar também de temas relacionados às questões das condições sociais dos negros, desde a ancestralidade africana, o tempo da escravidão até o advento do samba e a proliferação dos subúrbios e favelas na cidade do Rio de Janeiro. Os enredos de 1965, História do Carnaval Carioca, uma homenagem a pesquisadora Eneida de Moraes, abriu outra série de abordagens que colocavam a cidade e o carnaval carioca como personagens principais da trama escolhida. Cada vez mais assumindo nesta manifestação todos os traços da africanidade, tanto na questão rítmica quanto no gingado corporal que ia se inserindo ao manancial melódico que o samba-enredo ia estabelecendo.Os amores célebres do Brasil e Histórias da Liberdade no Brasil, respectivamente os enredos de 1966 e 1967 novamente traziam a cena abordagens críticas da história do Brasil. Se a primeira estruturava sua narrativa no lado pitoresco dos amores, nem sempre oficiais como o do Imperador D. Pedro I e a Marquesa de Santos o segundo enredo citado trazia em seu bojo uma mensagem contra a opressão que se vivia naquele momento. Várias vezes os ensaios foram interrompidos com corte da energia elétrica e a desconfiança da presença de homens estranhos na comunidade, provavelmente policiais pertencentes ao DOPS que acompanhavam os ensaios para apontar qualquer tipo de conotação política na preparação do carnaval da escola.Era de fato, uma demonstração de coragem por parte da agremiação, escolher o tema liberdade num momento crítico da nossa história política recente, onde o aparato militar montou um rígido esquema de repressão aos opositores ao regime, identificados, ou melhor, genericamente chamados de comunistas, procurando fechar todos os meios de comunicação para não informarem sobre as arbitrariedades cometidas pelos militares no poder. O que chama nossa atenção é o fato de perceber o pioneirismo do Salgueiro permitindo pela via carnavalesca oferecer uma abordagem nova, ácida e mais próxima da humanização dos personagens históricos, sobretudo, os de origem popular, numa nova forma de contar a história brasileira.Em 1968 com Dona Beija – a Feiticeira de Araxá, a agremiação novamente marca sua trajetória de originalidade destacando uma personagem também desconhecida do grande público. Se Ana Jacinta não se inseria no rol dos personagens negros, uma marca já consolidada naquele momento pela escola, a sua menção pode ser incluída no rol das personalidades femininas exaltadas pela agremiação.Com efeito, tanto em 1963, com Xica da Silva, quanto em 1965 numa homenagem a Eneida ou em 1966 com os amores célebres dando bastante ênfase e espaço para as figuras femininas dos casais célebres, estava se tornando outra tradição do Salgueiro dar destaque as mulheres que encarnavam em si o ideal de liberdade e de autonomia. Podia-se dizer que essas escolhas temáticas eram de certa forma, uma adesão da agremiação ao movimento feminista que tomava corpo, com grande intensidade em todo o mundo.No ano seguinte o Salgueiro aparentemente faria uma “involução”, pois, o enredo escolhido Bahia de Todos os Deuses permitiria a escola fazer uma homenagem a um dos estados brasileiros mais representados nos desfiles da nossa festa carnavalesca. Entretanto, por conta dos maus resultados obtidos pelas agremiações que escolhiam o tema, geraram a crença que essa opção daria azar. Mesmo sendo forte a superstição, o Salgueiro conseguiu o contrário, pois, a escola se tornou campeã exaltando a Bahia. O fato é que a abordagem da agremiação era bastante original transcendendo as representações da cultura e do povo da Bahia e investindo também nas representações das divindades presentes no candomblé. Aparentemente por certo pudor ou temor de ir contra a estética estabelecida na festa que mesmo sendo pagã revelava os traços de uma cultura católica, essas imagens do culto religioso sincrético realizado na Bahia e apropriado pelos grupos a princípio negros que de lá partiram, era pela primeira vez utilizada na festa do Carnaval. Essa coragem de mesclar as igrejas católicas e os orixás do candomblé num desfile de escolas de samba e ganhar o título quebraram essa idéia pré-concebida da mandinga ou azar e passaram a ser recorrentes nos anos seguintes pelas demais agremiações.A cidade do Rio de Janeiro foi tema do enredo de 1970, onde também o carnaval em seus primórdios ganhava destaque. Com Praça Onze, Carioca da Gema o Salgueiro fazia uma dupla homenagem, tanto para a cidade quanto para as escolas de samba. Pela primeira vez o reduto da Tia Ciata era cantado em verso e prosa oferecendo ao público e aos sambistas em geral uma versão do nascedouro do samba e das agremiações. O Salgueiro, desta forma criava uma genealogia para as escolas e para o próprio ritmo do samba estimulado pela turma do Estácio de Sá, liderados por Ismael Silva, Bide e outros sambistas que criaram a sincopa característica das escolas de samba. Fechando o período em destaque neste projeto de pesquisa, temos o enredo da escola no carnaval de 1971, Festa para um Rei Negro. É interessante notar que esse desfile fecha um ciclo de propostas temáticas que se tornariam razoavelmente recorrentes na história das escolas de samba. Partindo de uma narrativa que parecia gravitar entre o real e o ficcional a história contada era do menino rei que recebia a visita de uma corte especial vinda diretamente da África abriu caminho para alguns outros enredos que transitavam nessa esfera discursiva.Dessa forma, a escola coroou seus personagens e a sua comunidade por aceitar o desafio e comprar a briga estética e ideológica proposta pelos artistas que estavam criando os desfiles da agremiação. Agora os trajes africanos que foram utilizados eram em sua maioria trajes de uma nobreza africana. A auto-estima e a ação afirmativa geravam o desejo da comunidade do morro do Salgueiro de se exibir com as fantasias afros, numa linhagem da nobreza do continente africano.Essa nova postura foi conseguida ao longo de dez anos, após muitas conversas, alguns títulos e dos desfiles sempre marcantes do Salgueiro na década de 1960. Nessa altura, já participavam do barracão da escola, junto a Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, os artistas Maria Augusta, Joãozinho Trinta, Rosa Magalhães, Laíla, Renato Lage e outros que seriam os principais carnavalescos nos anos seguintes.De fato, a ousadia estética e ideológica proposta pelo Salgueiro geraram frutos e paulatinamente as demais agremiações foram se apropriando das personagens, da esfera simbólica, das representações sociais e artísticas que a escola de samba da zona norte da cidade trouxe para a avenida dos desfiles. O carnaval, naquele momento passava a ser sinônimo de Escola de Samba e esse conceito que já possuía três ícones: Portela, Mangueira e Império Serrano completavam seu panteon com a mais ousada das quatro: a GRES Acadêmicos do Salgueiro.

Referências Bibliográficas
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[1] Mestre em História Política pela UERJ – RJ e Doutorando em História pela UFF.
[2] Conceito trabalhado por Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia das Letras, 1987. Também encontramos em Rachel Soihet, A subversão pelo riso: o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
[3] Mikahil Bakhtin, A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento; o contexto de François Rabelais,São Paulo: Hucitec, UNB, 1987.
[4] As escolas de samba eram as pequenas Unidos do Salgueiro, Depois Eu digo e Azul e Branco.
[5] Esse foi o caso da Portela em 1942 com a Vida do Samba in Dulce Tupy, Carnavais de Guerra, Rio de Janeiro: ASB, 1985, p. 102.
[6] Ver Renata Sá Gonçalves, Os ranchos pedem passagem. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal das Culturas C / CDIC, 2003.

[7] Sergio Cabral, As escolas de samba do Rio de Janeiro, 2.ed., Rio de Janeiro: Lumiar, 2004, p.162.
[8] Haroldo Costa, Salgueiro Academia do Samba, Rio de Janeiro: Record, 1984, p.92.
[9] Essa sigla designa o título que todas as agremiações utilizam antes de seu nome específico e que significa Grêmio Recreativo Escola de Samba.
[10] Guilherme José Motta Faria, O Estado Novo da Portela:circularidade cultural e representações sociais no Governo Vargas, dissertação de mestrado – UERJ, 2008.

Artigos Completos do VII Congresso de História da Região dos Lagos

II
UM MODELO COLONIAL DE CONVIVÊNCIA

Ângela Maria Maia*


Já desde 1583/1587 quando o Padre Fernão Cardim e Gabriel Soares de Sousa escreveram suas narrativas, as capitanias do Nordeste eram o verdadeiro eixo econômico da América Portuguesa. Existiam outros centros em crescimento como o Rio de Janeiro, São Vicente e Piratininga, mas a sua importância era muito mais estratégica; a vida econômica da Colônia pulsava mesmo animada pelo caldo grosso que escorria das moendas, pelo ruído das caixas de açúcar que embarcavam para a Europa e, essa produção estava centrada nas capitanias da Bahia, Pernambuco e suas áreas próximas.
Nessa região eram intensos os contatos com a Metrópole e também entre os próprios colonos. A população apresentava-se fortemente miscigenada, pois as próprias condições do cotidiano tornavam-se propícias a essa miscigenação. A falta de mulheres brancas, já notada pelas autoridades nos primeiros tempos, se não era mais tão premente, ainda continuava existindo, explicando em boa parte o grande número de uniões dos colonizadores com o gentio da terra e ligações com negros escravos. Nessa população colonial era grande o número de elementos cristãos novos.
Para esses indivíduos, descendentes dos judeus convertidos à força em 1497, estigmatizados em Portugal por uma “marca” muito mais legal do que gene tica ou religiosa, o mundo colonial que se abriu a partir do final do Século XV, representou uma área de afastamento físico das pressões metropolitanas aliada à possibilidade de crescimento econômico.
O Brasil, principalmente a partir da época das Capitanias Hereditárias, abriu aos cristãos novos uma oportunidade maior de refúgio por ser uma área onde a colonização se iniciava e onde, em nome das necessidades dessa colonização, os olhos das autoridades portuguesas se fechavam a muitas coisas.
O desenvolvimento da agroindústria do açúcar que havia sido iniciada desde 1532 com os primeiros engenhos criados por Martim Afonso de Sousa em São Vicente, oferecia grandes possibilidades de enriquecimento para quem se deslocasse para a nova colônia. E também a isso os cristãos novos portugueses não podiam ficar indiferentes.
Para eles a situação em Portugal poderia no mínimo ser classificada como “tensa” . Apesar das medidas contemporizadoras de D. Manoel após a Conversão Forçada em 1497, os cristãos novos passaram a formar um grupo “diferente” no seio da população portuguesa como antes já haviam sido os judeus. Se estes eram diferentes por seus hábitos e crenças religiosas, os cristãos novos o eram porque existia agora sobre eles a suspeita, sempre presente nas leis seletivas e nas estruturas mentais da população, de sua apostasia ou retorno às antigas convicções religiosas consideradas heréticas.
A marca da suspeita era companheira do cristão novo mesmo que este não estivesse mais ligado à velha lei e fosse, mesmo em seu coração, verdadeiramente cristão. Por isso era interessante para ele uma região nova, relativamente longe de uma ação imediata do Santo Ofício e que ao mesmo tempo oferecesse boas oportunidades econômicas. Num lugar assim, os parâmetros seletivos ou excludentes da legislação feita para modelos portugueses, mesmo sendo obrigatórios, não poderiam funcionar do mesmo modo nem com a mesma rigidez.
No caso do Brasil, as capitanias dessa área garantiam refúgio a toda uma população que estava longe de ser religiosamente homogênea. Sendo a Colônia uma área nova e em desenvolvimento, o que importava primeiramente eram o trabalho e o esforço, sendo também mais ampla a possibilidade de participação dos grupos médios e populares na organização da vida colonial, desde que as classes privilegiadas eram representadas nela por pequenos contingentes ligados à ordem metropolitana ou enviados por ela.
Dos cristãos novos que procuraram as terras portuguesas da América, alguns eram convictamente conversos à fé cristã, embora outros permanecessem ainda secretamente judeus, existindo entre eles até mesmo alguns penitenciados pela Inquisição.
A identificação entre cristãos novos e criptojudeus é muito comum; bem como o aspecto da existência de um criptojudaísmo dominante entre os cristãos novos da sociedade colonial têm sido privilegiados na maioria das obras que aborda a presença desse grupo no Brasil. Colocando ambos os problemas em seus limites plausíveis, consideramos que de qualquer forma o ponto primordial a levar em consideração é a grande parcela de elementos cristãos novos que existia na população extremamente miscigenada da América colonial portuguesa. Nessa população, eles marcaram presença em todos os níveis sociais.
Observando as denúncias e confissões apresentadas à Mesa Inquisitorial entre 1591 a 1595 vemos aparecer cristãos novos senhores de engenho como Diogo Lopes Ilhoa, Bento Dias Santiago, João Nunes, Duarte de Sá,Heitor Antunes ou Tristão Ribeiro; mercadores como Diogo Roiz, João Bautista, Jorge Dias de Paz, Simão Mendes, Cristóvão Luis, Manoel Lopes Home3m, Thomas Nunes;mercadores de negros como Bastião Pireira, Fernão de Sousa, Manoel Roiz Villareal; ou mercadores de loja como Álvaro Sanchez,; médicos como Mestre Afonso Mendes, João Vaz Serrão, Jorge Fernandes, Pero Anriques, Fernão Soeiro e Anrique Nunes;lavradores como André Dias,Duarte Nunes,Francisco Antunes e Gaspar Gonçalves; alfaiates como Thomas Lopes, Fernão Gomes,Antonio Mendes e Balthazar de Barros; criados como Domingos Ribeiro, Antonio Gonçalves Rolete e Gaspar Coelho; feitores como Ambrósio Fernandes Brandão, Anrique Roiz, Simão Franco e Ruy Teixeira; trabalhadores de engenho como Gaspar Roiz e Luis Mendes; professores ou “mestres de moços” como Bento Teixeira e seu irmão Fernão Rodrigues.; costureiras como Maria Lopes ,esposa do cirurgião Afonso Mendes ou mestras de costura como Gracia Fernandes, Branca Dias e suas filhas Felipa de Paz e Inês Fernandes; confeiteiros como Diogo Lopes Ramos e Pero Cardoso ou funcionários como Domingos Nunes, João Serrão, Francisco Lopes da Rosa e Paulo D´Abreu; carcereiros como Braz Fernandes e ourives de ouro como Rui Gomes, ou de prata como Nuno Franco; boticários como Gaspar Rodrigues e Luis Antuners ou pedreiros como Balthasar da Fonseca; ferreiros como Manoel Roiz, oleiros como Mateus Franco, carpinteiros como Luis de Oliveira, torneiros como Manoel Antonio ,cirgueiros como Frrancisco Luis, vendeiras como Isabel Martins , donas de pensão com o Clara Fernandes e até prostitutas como Ana Franca. Havia cristãos novos em cargos da “governança” como era o caso dos senhores de engenho Duarte de Sá e Cristóvão Paes d´Altero e até clérigos como Gaspar Soares, Manoel Dias e Manoel Afonso. O próprio licenciado Diogo do Couto, ouvidor da Vara Eclesiástica de Olinda, confessou não saber ao certo se era cr5istão velho ou novo e sobre ele pesava a suspeita de, no exercício de seu cargo, ser favorável aos cristãos novos por serem seus iguais.
Existe então, uma profunda inserção dos cristãos novos no contexto social e na vida cotidiana das populações da região. São várias as referências a elementos cristãos novos em funções muitíssimo comuns no dia a dia da colônia. Neste caso estão, por exemplo, as menções da documentação a mercadores de escravos.
Gonçalves Salvador em seus estudos demonstrou que o tráfico negreiro em Portugal era em grande parte controlado por cristãos novos. Sendo a América portuguesa uma área que estava se desenvolvendo em base do trabalho escravo do africano, podemos imaginar a importância dessa atividade para o desenvolvimento econômico da região baseado na agroindústria açucareira. E a documentação mostra em vários momentos a presença de cristãos novos profundamente envolvidos com o comércio de negros.
Fernão de Sousa, genro de Branca Dias, é citado como tendo vindo de Angola com escravos. Bastião Pireira também é dito como vindo de Angola “com peças”; e Manoel Roiz Villareal viera para Olinda trazendo escravos, mas no momento estava no Porto.
Além do mais, devemos levar em conta que a menção do ofício de “mercador” também compreendia o comerciante que fazia negócios com o Reino ou o Exterior e incluía normalmente em suas mercadorias as “peças” de Angola ou da Guiné. Se observarmos o número de mercadores indicados na documentação e que não apresentam a ressalva que seu comércio era “de loja”, podemos imaginar o volume do comércio maior, incluindo ordinária ou extraordinariamente negros escravos, concentrado nessa região e indiscutivelmente nas mãos de negociantes cristãos novos; o que nos permite afirmar que neste setor prioritário para o desenvolvimento do cotidiano econômico da colônia, sua presença era um fato corriqueiro e aceito com toda a naturalidade.
A criação de um modelo muito próprio de coexistência entre cristãos novos e cristãos velhos na colônia é um fato muito claro desde que compreendamos a formação e os mecanismos de sobrevivência dessa sociedade surgida em condições muito especiais. A vida numa área colonial como a América portuguesa exigia formas de cooperação entre os habitantes num grau desconhecido na Metrópole. Momentos havia em que a vida de cada um dependia de seus vizinhos. As primeiras povoações eram núcleos mais ou menos fortificados mas sujeitos a inúmeros problemas e perigos.
Frei Vicente do Salvador refere-se à criação e fortificação em 1535 por Francisco Pereira Coutinho de um núcleo na entrada da baía de Todos os Santos que depois de alguns anos sofreu ataques de índios, tendo o donatário que fugir para Ilhéus. Neste sítio, anos depois, Tomé de Sousa desembarcou e fundou a cidade de Salvador. Também a vila de Igaraçu na capitania de Pernambuco pode ser citada como exemplo dessas vicissitudes, pois logo depois de sua criação sofreu um grande ataque e cerco dos potiguaras sendo socorrida e salva da fome pelos habitantes da ilha de Itamaracá. Também Olinda, nos seus primeiros tempos, sofreu vários ataques de índios.
Mas a necessidade de cooperação e a dependência entre os indivíduos na colônia não aconteciam apenas em situações que embora não muito raras, podem ser consideradas “de exceção”, como esses ataques de índios ou ataques de piratas às vilas do litoral. Também no dia a dia, quando somente a divisão de trabalho e a colaboração mútua poderiam levar adiante a tarefa a que todos se propunham de construir um lugar para viver e sobreviver numa nova terra ainda meio desconhecida e muito distante de seu país de origem. A vida nesses primeiros centros urbanos aproximava os colonos entre si. Nessa conduta coletiva, diante das necessidades do dia a dia, afastaram-se para um segundo plano os preconceitos entre cristãos velhos e cristãos novos, estabelecendo-se uma maneira de viver colonial mais integrada e cooperativa.
Nas entrelinhas da documentação, mesmo pela ausência de referências a lutas ou perseguições religiosas entre os colonos, aparece a realidade de uma convivência com tensões normais, mas sem choques. Isso não exclui a possível sobrevivência do preconceito estabelecido tanto na legislação vigente quanto na estrutura mental do colono cristão velho. Encontramos vestígio dele em casos como o de uma amiga de Ana Tristão no Rio de Janeiro, que se recusou a casar com um certo Luis Gomes porque ele era cristão novo, permanecendo por isso solteira. Também na preocupação da cristã nova Lianor da Rosa em saber se seriam legítimos para a Lei Velha, os filhos de sua sobrinha com um cristão velho; ou na briga entre Fernão Pires, cristão novo, e sua sogra Caterina de Almeida, cristã velha, que o acusava de te-la expulsado de sua casa depois que ela insistiu para que ele se confessasse, além de manter a esposa de 12 anos de idade trancada em casa e afastada dela que era sua mãe,
E´ justamente a presença desse preconceito que torna mais interessante o modelo de coexistência colonial que, diante da necessidade maior de cooperação, o minimiza e reduz até quase desaparecer do cotidiano, a ponto de não ser mencionado pelos cronistas da época. Esse preconceito só ressurgiu e explodiu em tensões a partir da pressão do Santo Ofício exercida com a sua presença na Colônia.
Podemos então admitir que, apesar da presença de um preconceito latente, a convivência pacífica na Colônia foi forçada pela necessidade que teve a função de aproximar os grupos e aliviar possíveis atritos. Nos documentos surgem cenas do dia a dia em que o relacionamento se faz normalmente.
Gracia de Siqueira,cristã velha, disse que Fernão Gomes, alfaiate cristão novo, quando conversavam sobre “cozinhar gostoso”, lhe ensinou a forma como preparava a sua comida. Antão Martinez, cristão velho mercador, era vizinhos “tinha comunicação particular de comerem e beberem juntos” com Rodrigo D´Avila, moço solteiro e também mercador que ele acreditava ser cristão novo. Gaspar Duarte, cristão novo conversava naturalmente com seu vizinho Amador Gonçalves, carpinteiro cristão velho, sobre o destino da alma dos índios. Ainda além disso, Bento Teixeira e seu irmão Fernão Rodrigues , cristãos novos,eram professores, “mestres de moços”, sem distinção para a origem de seus alunos; e na mesma classe do Colégio da Companhia de Jesus na Bahia, conviviam estudantes de todas as origens religiosas e sociais como Fernão Garcia, cristão velho filho de um carpinteiro, Domingos Lopes, sobrinho do Arcediago da Sé, Martim Lopes, filho de um membro da governança, Simão Adrian, filho de um mercador flamengo e Manoel de Fará, cristão novo, filho de um senhor de engenho e que foi denunciado pelo primeiro de seus colegas citados, por não rezar, não ir à doutrina dos padres e usar roupa limpa aos sábados.
Os fatos demonstram inclusive que essa coexistência independe da presença de judaizantes no seio da sociedade, pois vemos elementos que foram denunciados e julgados na Visitação de 1591-1595 como notórios criptojudeus, relacionando-se antes, normalmente, nos quadros do cotidiano, com os cristãos velhos. A convivência era, portanto, ordinária e natural.
Eram cristãs velhas como Isabel Frasoa e Joana Fernandes as alunas da cristã nova Branca Dias, que conviveram com a mestra e suas filhas durante anos. Beatriz Luis era cristã velha, vizinha de Branca Dias e estava presente na hora da morte de Diogo Fernandes seu marido. Pedro Bastardo, que suspeitava ser cristão novo, esteve no sertão lado a lado com companheiros cristãos velhos e também com alguns deles viveu com o gentio da terra. Os cristãos velhos Agostinho de Freitas e Antonio Gonçalves jantavam normalmente com os cristãos novos Fernão Soares e Diogo Soares no engenho desses últimos. Também Adrião de Góis, cristão velho pedreiro, almoçava com o cristão novo Diogo Nunes em sua fazenda e com ele conversava sobre o pecado da carne. Maria de Faria, cristã velha, estava na casa da cristã nova Maria Alvarez e conversava normalmente com ela mesmo durante a Semana Santa. Também João da Guarda, cristão velho morador em Igaraçu, conversava com outros cristãos velhos Brás Correa Dantas e Estevão Ribeiro, bem como com o cristão novo Brás Fernandes sobre as bulas concedidas pelo Papa.
Na Bahia, Isabel de Oliveira, cristã velha, quando denunciou algumas cristãs novas, Lianor da Rosa, Maria Lopes e Caterina Mendes, disse que era comadre de Lianor e amiga de todas. Gaspar de Palma, cônego da Sé, ao denunciar em 1591 a cristã nova Maria Lopes, disse que ao ir à casa dela para conversar e encontrando a porta aberta,encontrou-a lendo um livro que escondeu ao vê-lo. Vemos nesse episódio que um cônego entrava naturalmente na casa de uma família cristã nova sem mesmo bater na porta e de forma tão íntima que chegou a surpreender a própria dona da casa. A mesma família surge em outro episódio como recebendo duas irmãs cristãs velhas, Caterina e Guiomar Fontes, durante a Semana Santa e ceando em companhia de Madalena Pimentel e sua mãe, também cristãs velhas.
Foi Diogo Lopes Ilhoa, cristão novo dono de engenho e muito denunciado em 1591-1593 , que acolheu em sua fazenda os sobreviventes da expedição de Gabriel Soares de Sousa. O mercador cristão novo João Bautista aparece freqüentando normalmente a casa do arcediago da Sé, chegando a pronunciar-se ali contra a Inquisição. E ainda a senhora Ana Roiz, cristã nova que seria presa e executada pelo Santo Ofício anos depois, convivia harmonicamente com seus contraparentes cristãos velhos, chegando a oferecer, por ocasião da Páscoa, o pão ázimo que fizera, para a irmã de seu genro. A cristã velha Isabel Serrão privava atal ponto da intimidade dos cristãos novos da família Antunes, que se refere a reuniões de amigas em sua casa e nas casas de Beatriz e Lianor Antunes. E ainda Margarida Pacheca, também cristã velha, se refere a uma visita que fez a Beatriz Antunes quando esta estava desgostosa por ter-se desentendido com o marido cristão velho Bastião de Faria. Como vemos a intimidade e a naturalidade nesse último episódio era muito grande para poder existir uma visita de amiga num momento com essas circunstâncias.
A integração dos cristãos novos nesse cotidiano colonial é tão natural que a própria documentação inquisitorial mostra momentos de contato íntimo e amigável entre eles e muitos membros da comunidade religiosa local. Além do já mencionado caso do mercador cristão novo João Bautista freqüentando a casa do arcediago da Sé da Bahia, vemos referências a um relacionamento diário e natural do padre cristão velho Francisco Pinto Doutel com a cristã nova Branca Dias quando ele se apresenta para denuncia-la e diz que falou-lhe muitas vezes na igreja, e em sua casa com “muitas e longas conversas”.
Na própria organização eclesiástica da Colônia, a presença integrada de cristãos novos aparece clara pelas posições que muitos deles ocupam.
Gaspar Soares era capelão de um engenho em Pernambuco; Manoel Dias , clérigo em Olinda. Diogo do Couto, não podia precisar sua origem mas era ouvidor da Vara eclesiástica de Olinda e Manoel Afonso, já falecido na época da Visitação, havia sido meio-cônego da Sé da Bahia.
Também, decorrente da necessidade de cooperação para a sobrevivência individual e social nas terras coloniais, a presença integrada dos cristãos novos em cargos vitais para a vida administrativa das capitanias, se faz notar com muita frequência. Em Pernambuco podemos identificar Duarte de Sá, o vereador mais velho de Olinda; Cristóvão Paes D´Altero, também da governança de Olinda; João da Rosa e Diogo Lopes da Rosa, tabeliães em Olinda; Brás Fernandes, meirinho da vila de Igaraçu e Paulo D´Abreu que era escrivão da alcaidaria de Igaraçu. Francisco Lopes da Rosa era tabelião público e judicial em Filipéia na Paraíba; e na Bahia, além de Phelipe de Guillem que foi provedor da Real Fazenda em Porto Seguro, surgem também Gaspar Curado como capitão de milícia, João Serrão que havia sido almotacel e Pedro Teixeira que era escrivão da almotaçaria.
Ainda dentro do modelo colonial de convivência, um aspecto a ser destacado e refletido é o dos casamentos mistos. O grande número de casamentos entre cristãos velhos e cristãos novos é indicativo, senão de uma integração, pelo menos de uma profunda aproximação resultante da necessidade que forçou uma aceitação natural.
Os casamentos, e ainda as uniões ilegais ou extraconjugais de caráter misto, surgem em todos os níveis sociais desde os mais abastados até os mais humildes. Assim, eles vão desde as uniões dos mais simples como a cristã nova estalajadeira Clara Fernandes com o carcereiro cristão velho Manoel Fernandes; Bartolomeu Garcez, cristão novo obreiro de alfaiate com Maria Gonçalves cristã velha mameluca, na Bahia; ou a de Isabel Martins, cristã nova vendedeira com um cristão velho degredado de nome Barroso em Pernambuco; até os casamentos dos grandes senhores como Garcia D´Avila, sertanista pioneiro da criação de gado na Colônia e senhor da Casa da Torre com a cristã nova Mécia Roiz denunciada várias vezes em 1591 diante do Visitador e cuja mãe era judaizante “de fama pública”.
Com exceção de duas uniões mistas sabidamente críticas e que foram desfeitas com violência, não temos notícias de choques conjugais entre cristãos velhos e cristãos novos . Os casamentos de Bento Teixeira e Salvador da Maia com cristãs velhas terminaram em tragédia pois os maridos mataram suas esposas por infidelidade; mas esse motivo nada tinha a ver com as condições de origem ou religião das vítimas.
Em contraponto a essas uniões infelizes, podemos apontar alguns casos em que uniões mistas eram publicamente sólidas e firmes. O primeiro deles desafiava até mesmo os padrões e limites morais da época. Era a ligação entre o cristão novo João Nunes e a cristã velha Francisca Ferreira, uma mulher casada. Para deixar livre o seu caminho, João Nunes enviou o marido traído para Portugal com uma missão. Quando ele retornou, o escândalo era tão público que o levou a iniciar um processo por adultério; mas João Nunes requereu e conseguiu a anulação do casamento de Francisca diante das autoridades eclesiásticas na Bahia, não aceitando negociar nada com o marido.
João Nunes era um homem poderoso, mercador e dono de engenho, para quem não deviam faltar oportunidades de casamento, compreendendo-se Assim até o interesse de Francisca Ferreira em manter a ligação; mas de qualquer modo o que fica claro é que a origem religiosa não afastou os dois parceiros sendo, ao contrário um fator possivelmente minimizado e relegado diante de outros interesses e realidades.
Outro exemplo de uniões mistas onde os fatores de origem ou religião não interferiram na firmeza da união familiar está na Bahia entre os membros da família Antunes.
Heitor Antunes, cristão novo, e sua esposa Ana Roiz, também cristã nova, chegaram ao Brasil em 1557 acompanhando o governador Geral Mem de Sá. Com eles vinham alguns de seus filhos; outros nasceram na Bahia. Foram ao todo sete: Isabel Antunes, Violante Antunes, Beatriz Antunes, Lianor Antunes, Jorge Antunes, Álvaro Lopes Antunes e Nuno Fernandes Antunes. Todos os filhos de Heitor Antunes e Ana Roiz se casaram com cristãos velhos. Violante Antunes casou-se com Diogo Vaz Escovar; Isabel Antunes com Antonio Alcoforado; Beatriz Antunes com Sebastião de Farias,Lianor Antunes com Henrique Moniz Telles; Jorge Antunes com Joana de Sá Betencourt e Álvaro Lopes Antunes com Isabel Ribeira. Entre todos esses cônjuges Sebastião de Farias e Henrique Moniz Telles eram pessoas de alta projeção na sociedade baiana naquele momento.
Também se casaram com cristãos velhos vários netos do casal de patriarcas, inclusive as netas que se envolveram com a Visitação de 1591, Custódia de Farias e Ana Alcoforado.
E´ interessante o caso do filho Nuno que tomava conta da mãe na época da Visitação. Ele manteve ligações profundas com outra família cristã nova de Salvador, a de Mestre Afonso Mendes e Maria Lopes; chegando a permanecer doente em sua casa. Nesse contato conheceu uma neta do casal e quis casar-se com ela, no que o impediram sua mãe, as irmãs e os cunhados, gerando com isso forte inimizade entre as famílias. A ligação com cristãos velhos era então interessante e defendida com empenho. Nuno permaneceu solteiro.
Contra a família Antunes foram apresentadas várias denúncias ao Visitador entre 1591 e 1593. O velho Heitor Antunes, já defunto na ocasião, foi acusado de dizer-se descendente dos Macabeus, de fazer “esnoga” em sua casa, possuindo uma “toura” e promovendo reuniões secretas de vários cristãos novos. Nuno, o jovem infeliz no amor,confessou ter lido livros proibidos e teve que entregar um deles à Mesa. Mas o grande volume de acusações se concentrou em Beatriz, Lianor e na velha senhora Ana Roiz, acusadas de práticas indicativas de judaísmo.
Diante dos indícios e das confissões das pessoas mais envolvidas, podemos considerar que a família Antunes era realmente centro de um ativo núcleo judaizante; e podemos também ponderar que em anos de convivência tão estreita não se fez sentir nenhuma pressão ou repressão da parte dos elementos cristãos velhos da família contra a crença ou as atitudes de seus parentes cristãos novos, mesmo judaizantes.
Sobre a expressão clara de uma atitude suspeita, apenas um pedido de cautela, quando, diante da recusa da velhinha Ana Roiz, doente, de aceitar um crucifixo, sua filha D. Beatriz lhe recomendou: “Mãe,não nos desonreis, que somos casadas com homens cristãos velhos e nobres.”
Mas essa cautela não evitou a carga de denúncias e as conseqüentes suspeitas do Visitador que recebeu ordens do Conselho Geral da Inquisição para prender a velha senhora. Realmente D. Ana foi presa a 23 de abril de 1593 e embarcada para o Reino a 2 de julho. De suas filhas, pelo menos temos certeza da prisão e interrogatório de D. Lianor em Lisboa. Sobre D. Beatriz há fortes indicações.
E´ fato notável e muito significativo, o esforço que fizeram os genros cristãos velhos de D. Ana para justifica-la, inocenta-la e livra-la da fogueira. Disseram que era muito velha, entrevada e caduca, impossibilitada de dar um testemunho coerente, e que as acusações contra ela só poderiam ter partido de inimigos da família. Seus esforços, porém, não foram bem sucedidos pois D. Ana morreu na prisão e foi queimada em efígie. Mas ainda num último momento ficou demonstrada a união da família; quando Henrique Moniz Telles mandou retirar da frente da igreja de seu engenho o retrato da sogra penitenciada, colocado ali por ordem do Santo Ofício.
Vemos em todos esses fatos uma família mista, com elementos certamente judaizantes, mas intimamente relacionada entre si. Testemunhamos os esforços de seus elementos cristãos velhos poderosos que empenharam seu prestígio, tentando usar o seu poder junto ás autoridades da Metrópole para defender seus parentes cristãos novos, arriscando a sua própria reputação e até ousando contrariar uma determinação do Santo Ofício para preservar a honra de sua estirpe.
Os próprios Sebastião de Farias e Henrique Moniz Telles na sua solicitação ao Santo Ofício em defesa de Ana Roiz, fizeram questão de apresentar os casamentos mistos da família como um ponto positivo que depunha em favor da acusada. Em nenhum momento a realidade desses casamentos foi ocultada ou disfarçada por vergonha; sendo, pelo contrário, ostentada com altivez e orgulho.
Devemos considerar , porém, que os casamentos mistos não significam necessàriamente o desaparecimento de todas as tensões entre cristãos velhos e cristãos novos na Colônia. Tensões sociais existem em quaisquer grupos que sejam distinguidos uns dos outras por uma legislação especial ou discriminatória; mas essas tensões tendem a diminuir, a serem minimizadas, quando existe, por outro lado, uma aproximação normal através da convivência cotidiana e por aí, a aceitação de parceiros conjugais em uniões legitimadas ou não.
E´ sempre bom recordar também que o casamento numa sociedade patriarcal é uma relação que aproxima não só os cônjuges, mas igualmente as famílias. Logo, leva em sua própria essência uma profunda carga de coexistência grupal. Assim, o número expressivo de uniões mistas entre cristãos velhos e cristãos novos nas Capitanias do Açúcar neste fim de século XVI, assume uma conotação indicativa de uma coexistência sócio/familiar que se fazia sem muitos choques, mesmo quando os elementos cristãos novos pertenciam à comunidade que era judaizante.
A existência dessa comunidade judaizante em boa parte reconhecida,em nada prejudicava o relacionamento entre seus membros e o resto da sociedade cristã. Muito pelo contrário, era esta existência real e quase pública que tornava a convivência tranqüila num modelo social novo em pleno vigor na Colônia.
Isso se prova ainda mais quando observamos e refletimos sobre comportamentos que retratam a naturalidade do dia a dia: visitas entre cristãos velhos e cristãos novos; o oferecimento do pão ázimo, a “matzá” judaica, feito por Ana Roiz à cristã velha Custódia de Faria num gesto que poderia no mínimo significar uma disposição amistosa; ou a brincadeira feita em Ilhéus pelo muito denunciado cristão novo Salvador da Maia que escreveu num retábulo quebrado de seu amigo cristão velho “esnoga de João Braz”. Em todos esses momentos presenciamos uma naturalidade tão grande entre as pessoas que permitia um gesto como o de D. Ana Roiz que em outras circunstâncias seria arriscado, ou ainda uma brincadeira que envolvia uma crítica irônica a objetos e valores religiosos mútuos.
Em Pernambuco, Branca Dias dava aulas de costura e abrigava em sua casa várias alunas cristãs velhas em convivência direta e normal tanto consigo quanto com suas filhas. Diogo Fernandes, seu marido, foi recomendado ao Rei de Portugal por Jerônimo de Albuquerque, e na hora da morte foi assistido por D. Brites de Albuquerque, sua irmã e viúva do donatário Duarte Coelho.
Na luta contra os corsários e invasores e na conquista do território aos nativos, momentos vitais para a preservação da obra da colonização, junto aos cristãos velhos atuaram também vários cristãos novos. Nos combates que desalojaram os franceses da Paraíba em 1585 participaram Ambrósio Fernandes Brandão e Fernão Soares com uma ação direta, além de João Nunes com empréstimos. Na conquista de Sergipe aos índios aimorés, participaram lutando lado a lado Diogo Lopes Ilhoa, senhor de engenho cristão novo e Sebastião de Farias, senhor de engenho cristão velho, genro do casal cristão novo Heitor Antunes e Ana Roiz.
Além de tudo isso, os cristãos novos também reconheciam que nessa terra, com a vivência pacífica ao lado dos cristãos velhos, havia imensas possibilidades de progresso e riqueza. Esse espírito e sentimento perpassa os Diálogos das Grandezas do Brasil escritos provavelmente em 1618 mas da autoria de Ambrósio Fernandes Brandão, cristão novo mercador, trabalhador no engenho de Bento Dias Santiago também cristão novo, ambos contemporâneos da 1ª Visitação.
Eram essa coexistência diária e essa conjugação de interesses que marcavam o novo modelo que consideramos existir na sociedade das Capitanias do Açúcar; um modelo social de convivência sem choques, sem perseguições ou perigo de massacres, onde o preconceito era minimizado diante de outros fatores que assim se tornavam social e individualmente muito mais importantes ; onde todos os cristãos novos tivessem o seu lugar no contexto da sociedade com as mesmas oportunidades de sucesso e participação que os cristãos velhos; em que ninguém e acima de tudo o judaizante, mesmo praticando mais ou menos publicamente os seus rituais, fosse por isso cerceado, humilhado, perseguido ou castigado, sendo naturalmente aceito em convivência tranqüila e total participação social.
Era esse modelo que achamos que começava a se desenvolver nas terras do Açúcar quando a Visitação inquisitorial de 1591 ali desembarcou. Cristãos novos e cristãos velhos já estavam fortemente unidos por laços de família e da própria convivência cotidiana. A Visitação remexeu as brasas que já estavam quase apagadas sob as cinzas. O equilíbrio social foi quebrado. O preconceito subiu à tona, acionado pelos mecanismos de pressão psicológica forçados pelo medo. E o tecido social fragmentou-se. A realidade geral unida dividiu-se em várias pequenas realidades individuais assustadas e solitárias.


* Mestre em História - UFF

terça-feira, 17 de novembro de 2009

VII Congresso de História da Região dos Lagos



VII Congresso de História da Região dos Lagos
As Cores da História: historiografia, religiosidade e manifestações culturais
Local: Universidade Veiga de Almeida (Auditório Principal - Campus Perynas)

Inscrições abertas:

Setor de Eventos e Setor de Marketing – 1º Andar
Taxa de Inscrição – R$ 30,00 (trinta reais)
O participante receberá Certificado de participação e Cd com os textos das palestras.
Vale 20 horas de A.A.C.C.

Programação :

16/11 – Segunda-feira

18:00 h Exibição do Documentário:

O Estado Novo da Portela (Guilherme José Motta Faria);

18:30 Aula-Espetáculo:

Escravidão: um passado de vergonha

(Teatro de Bonecos Trio de Três- São Gonçalo-RJ)

19:00h - Mesa de Debates

João Gilberto da Silva Carvalho (Doutorando Psicologia Social - UFRJ)
Modernidade: O Tempo da Exclusão.

Guilherme José Motta Faria (Doutorando - História – UFF)
Nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente: Os Acadêmicos do Salgueiro e as transformações estéticas e ideológicas na cultura brasileira - 1959-1972.

Dulce Tupy (Jornalista e Pesquisadora)
O caráter de resistência cultural e a afirmação da identidade do negro, através do Carnaval – 1920 - 1940.

Cleise Campos ( Mestre em História Social e Política do Brasil – UNIVERSO )
História Cultural: O mosaico cultura & educação no Brasil


17/11 – Terça feira

18:00 h Exibição de Documentários:

Jongos, Calangos e Folias (Martha Abreu e Hebe Mattos - LABHOI-UFF)

Gamboa - Histórias de pescador (Rafael Peçanha de Moura)


19:00h - Mesa de Debates

Álvaro Pereira do Nascimento (doutorado UNICAMP e pós-doutorado EUA )
Relações Raciais e Cultura Negra no Brasil

Camila Mendonça Pereira e Camila Moraes Marques (Mestrandas UFF)
A pesquisa histórica em Jongos, calangos e Folias

Paulo Roberto Pinto Araújo
Escravos libertos em Cabo Frio às vésperas da abolição: notas de pesquisa

Rafael Peçanha de Moura (Pós-Graduando em Sociologia Urbana UERJ )
Sociedade de Rede: Cultura, Identidade Social e Histórias de Pescador no bairro da Gamboa (Cabo Frio-RJ)

18/11 – Quarta-feira

18:00 h Exibição de Documentários:

Atlântico Negro - Na Rota dos Orixás ( Renato Barbieri)

Ibiri, Tua boca fala por nós (Nilma Teixeira Accioli)

Prêmio de Público do Festival de Filmes de Pesquisa , do Centre International de Recherches sur les Esclavages (Ecole de Estudes Sociales de Paris).

19:00h - Mesa de Debates

Nilma Teixeira Accioli – (Historiadora e Museóloga.Pós-graduação em História do Rio de Janeiro)
Campos Novos e a Rota Ilegal de Escravos.

Renata Cristiane (História UVA e Jornalismo FACHA)
Homossexualidade a luz da História.

Ângela Vieira Maia (Mestrado História UFF)
Os cristãos novos e a Inquisição no Brasil: Um modelo colonial de convivência

Vanessa Brunow (mestranda em História UFF )
Edward Thompson e suas análises sobre folclore e cultura popular.

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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

HISTÓRIA REGIONAL - CHARITAS (Cabo Frio)

Por Guilherme Guaral*

Conforme se registrou na Ata da Câmara toda a Irmandade de Santa Isabel esperava o Imperador com velas acesas na mão e “S.M. depois de correr os edifícios da capela dos expostos e da enfermaria, dignou-se a honrar a Irmandade aceitando o título de protetor (...), fazendo o mesmo Augusto Senhor dar a esmola de oito contos de réis, para benefício da casa, que foram logo entregues pelo seu mordomo”.

A visita do Imperador modificou drasticamente a rotina da cidade de Cabo Frio. A aristocracia local, vivia a opulência da produção salineira e exibia um luxo que remetia aos ares mais europeus do que tropicais. A grande quantidade de escravos pelas ruas nos permite perceber que essa era outra medida de riqueza da nobreza cabofriense. Fogos de artifício, guarda engalanada, banda de música e muitos bailes saudaram a visita mais ilustre que essa terra havia recebido.

Em 1868, a Princesa Isabel e o Conde d’Eu também visitaram a Charitas e foram recebidos pela Irmandade. Esse foi outro momento de esplendor da elite da cidade que vivia sempre na expectativa de poder se exibir.

A sociedade cabofriense vivia devotada aos festejos, principalmente os religiosos. Se agrupando em Irmandades as famílias tradicionais da cidade prestavam algum tipo de serviço de caridade e se esmeravam nos preparativos das festas da santa padroeira Nossa Senhora da Assunção, onde a Matriz e a Praça, atual Porto Rocha se tornavam o epicentro das festividades.
Outra festa de caráter religioso que movimentava todas as classes sociais era a Festa do Divino Espírito Santo. No livro “Memórias de um sargento de Milícias” de Manoel Antônio de Almeida temos um relato interessante de como essa festa acontecia no Campo de Santana na cidade do Rio de Janeiro:

“ Durante os nove dias que precediam ao Espírito Santo ou mesmo, não sabemos se antes disso, saía pelas ruas da cidade um rancho de meninos, todos de 9 a 11 anos, caprichosamente vestidos `a pastora: sapatos de cor-de-rosa, meias brancas, calção da cor do sapato, faixas à cintura, camisa branca de longos e caídos colarinhos, chapéus de palha de abas largas ou forrados de seda, tudo isto enfeitado com grinaldas de flores, e com uma quantidade prodigiosa de laços de fita encarnada. Cada um destes meninos portava um instrumento pastoril em que tocavam pandeiro, manchete e tamboril. Caminhavam formando um quadrado no meio do qual ia o chamado Imperador do Divino, acompanhados por uma música de barbeiros e precedidos e cercados por uma chusma de irmãos de opa levando bandeiras encarnadas e outros emblemas, os quais tiravam esmolas enquanto eles cantavam e tocavam.

O imperador, ... ia no meio: ordinariamente era um menino mais pequeno que os outros, vestido de casaca de veludo verde, calção de igual fazenda e cor, meias de seda e sapatos afivelados, chapéu de pasta, e um enorme e rutilante emblema do Espírito Santo ao peito: caminhava pausadamente e com ar grave.


.... Entretanto, apenas se ouvia ao longe a fanhosa música dos barbeiros, tudo corria à janela para ver passar a Folia: irmãos aproveitavam-se do ensejo e iam colhendo esmolas de porta em porta.”(MACEDO, 1997, p.91-93)

A historiadora Martha Abreu, especialista em festejos populares, aponta as semelhanças entre essa manifestação em todo estado do Rio de Janeiro. Percebemos, entretanto que em Cabo Frio, a partir do relato do Dr. Hilton Massa, essa festa mantinha a característica da inclusão, mas os personagens centrais, que eram o imperador, o mordomo, o alferes da bandeira, o pajem do estoque, acabavam sendo sorteados entre os chefes de família que eram os chefes políticos locais. Interessante junção entre festejos, religiosidade, política e festança que duravam mais de 7 dias, com regalo de comida, bebida, música e danças e as vezes muita confusão.

“Festa de cunho político regional, dela, comentava-se, só os liras participavam, até que certo ano, logo após a missa solene, `a porta da igreja, no sorteio de novo imperador da coroa, do alferes da bandeira, e do pajem do estoque, que seriam encarregados da festa vindoura, o cônego Brito, dizem, colocou seis nomes de jagunços na urna, alterando o sistema da sorte. Esta muito caprichosa, escolheu logo, naquele mesmo dia, o nome do capitão Antônio da Cunha Azevedo, para novo imperador. Acontece, porém, que a festa realizada por este, - e que duraria sete dias -, não acabou, ou melhor, acabou em grossa pancadaria, logo no primeiro dia.” (MASSA, 1996, p.123)

Essa alta sociedade cabofriense, que rivalizava em torno de política e da música, com suas sociedades lítero-musicais se vestia à inglesa, usando muitas vezes os homens ternos de casimira ou longos sobretudos. As senhoras usavam seus vestidos armados de seda ou tafetá, com xales e pequenos chapéus de feltro ou palha italiana. Já os escravos se vestiam do jeito que dava. Os homens em sua maioria de torso nu, portanto calças de algodão cru, de sisal ou sacos de aniagem. As escravas se vestiam com panos de chita coloridos, ou sobressaindo tons brancos de tecidos rústicos com saias compridas em tons escuros ou listrados em cores variadas. Algumas de origem da Costa da Mina usavam turbantes, colares de contas e miçangas e um pano, geralmente bastante colorido no dorso esquerdo cruzando até o lado direito, como se fosse uma faixa.

Uma festa predominantemente negra que acontecia na Passagem, no início de janeiro, era o bangulê, ritual de músicas e danças africanas, ao som de tambores que tomava conta da praça em frente à Igreja de São Benedito, durante as comemorações desse santo que era padroeiro dos negros. Essas manifestações de música e danças eram muito mal vistas pela polícia e geralmente acabavam com uma intervenção violenta da força policial, como encontramos no já citado livro de Manoel Antônio de Almeida, “Memórias de um Sargento de Milícias”.

Novos usos e novas funções do Charitas
Hospital, quartel, Fórum, Escola, Biblioteca


Até 1938, a Charitas recebeu crianças enjeitadas e atendeu doentes pobres. Posteriormente, novos usos foram dados ao imóvel: Quartel do Exército na 2ª Guerra Mundial, Instituto Sagrado Coração de Jesus, Fórum de Justiça e Biblioteca Regional.

Mais recentemente, a Charitas, instituiu-se Casa da Cultura da Prefeitura Municipal de Cabo Frio, subdividindo-se em Biblioteca, Pinacoteca, Museu e Instituto Municipal do Patrimônio Cultural, abrigando também a Secretaria de Turismo. A antiga enfermaria passou a ser residência do Capelão, que guardava o arquivo da Irmandade Santa Isabel e posteriormente ocupada pela Comunidade S.8.

Em 1978 a Charitas foi tombada pelo INEPAC – Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, e em 1982, pelo IMUPAC – Instituto Municipal do Patrimônio Cultural, quando foi parcialmente restaurada .

Em 1993, a Charitas encontrava-se em deplorável estado de conservação. 2 laudos técnicos (1990 e 1993) atestavam que a qualquer momento o telhado poderia ruir e a fiação elétrica pegar fogo. Em outubro de 1993, a Prefeitura Municipal transferiu os serviços públicos que funcionavam na Charitas e interditou o prédio. E na gestão do Prefeito José Bonifácio Ferreira Novellino, contando apenas com recurso financeiros locais, resolveu solucionar o problema. A restauração foi executada num prazo de 4 (quatro) meses, com o custo de aproximadamente R$300.000.00 (trezentos mil reais).

Entretanto, a reforma definitiva, que deu ares de importante monumento histórico da cidade se deu no Governo do Prefeito Alair Corrêa em 2000, quando definitivamente os problemas foram sanados e a restauração do prédio recuperou peças antigas e objetos artísticos que estão integrados ao acervo da Casa de Cultura José de Dome.


Uma homenagem a José de Dome
Um artista e sua Arte




José de Dome nasceu em Estância, Sergipe, no dia 29.11.1921 e morreu em Cabo Frio, no dia 15.04.1982. Seu nome de batismo era José Antônio dos Santos. Já na infância era conhecido como José de Dome, apelido de casa, abreviatura de Dometila, nome de sua mãe, que servia para diferencia-lo dos inúmeros “Josés” de sua cidade.

Realizou sua primeira exposição individual no Belverde da Sé, em Salvador – BA em 1995 e em 1981, sua última exposição foi realizada na Galeria Bonino, Rio de Janeiro – RJ. Pintando durante quarenta anos, realizou mais de cem exposições individuais e coletivas. Radicou-se nos últimos dezessete anos em Cabo Frio. Expões na França, Itália, Peru, México, Inglaterra, Estados Unidos, Espanha, Nigéria e Portugal.

Possui obras em coleções particulares, oficiais e em Museus do Brasil e do exterior, além de possuir murais na agência do Banco do Brasil em Nova York e no Banerj Rio de Janeiro.

Consagraram-no os cabofrienses, denominando “José de Dome” a rua em que morava, o CIEP nº357 de Tangará e criando a CASA DA CULTURA JOSÉ DE DOME.

Charitas a Casa da Cultura de Cabo Frio
Viva a diversidade Cultural !


O Charitas tem sido um dos espaços culturais mais intensos da cidade de Cabo Frio. A diversidade cultural tem um espaço garantido, pois todas as manifestações artísticas, científicas, acadêmicas e culturais passaram e passam por esta Casa. Apresentações de Teatro, Dança, Exposições e cursos de Artes Plásticas, Encontro de Corais, recitais de jovens e consagrados instrumentistas, jogral com alunos da rede pública de ensino.

Assim como exposições de fotografia, como a do conceituado fotógrafo Sebastião Salgado, a maratona fotográfica, exibições de filmes, lançamento de livros, apresentações de espetáculos de bonecos, artesanato, esculturas e na festa “Tudo ao mesmo tempo” que sintetiza essa idéia de ser o Charitas esse espaço plural, onde Artistas e Alunos, Mestres e artesãos transitam com energia nesse saboroso caldeirão cultural, localizado no coração de Cabo Frio.


Bibliografia

ABREU, Martha Campos. O Império do Divino. Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro. 1. ed. Campinas: UNICAMP, 2001.

ALMEIDA, Manoel Antônio. Memórias de um Sargento de Milícias. Porto Alegre: LPM, 1997.


BERANGER, Abel Ferreira. Dados Históricos de Cabo Frio. 3. ed. Prefeitura Municipal, 2003.


CUNHA, Márcio Werneck da. A História do Charitas. Prefeitura Municipal de Cabo Frio, 1992.


ENDERS, Armelle. A História do Rio de Janeiro. 1.ed. Rio de Janeiro: Griphus, 2002.


GUIMARÃES, Célio Mendes. Trajetória da Sociedade Musical Santa Helena. 1. ed. Cabo Frio: s/ed., 1996.

MASSA, Hílton. Cabo Frio nossa terra, nossa gente. 2. ed. Rio de Janeiro: DINIGRAF, 1996.

SILVEIRA, Luiz Carlos da Cunha. O Outro Cabo Frio. 1. ed. Cabo Frio: S/ed, 2003.


Cabo Frio, 14 de Dezembro de 2007


* doutorando em história na Universidade Federal Fluminense (UFF)e Secretário de Cultura do Município de Cabo Frio.

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