Conforme se registrou na Ata da Câmara toda a Irmandade de Santa Isabel esperava o Imperador com velas acesas na mão e “S.M. depois de correr os edifícios da capela dos expostos e da enfermaria, dignou-se a honrar a Irmandade aceitando o título de protetor (...), fazendo o mesmo Augusto Senhor dar a esmola de oito contos de réis, para benefício da casa, que foram logo entregues pelo seu mordomo”.
A visita do Imperador modificou drasticamente a rotina da cidade de Cabo Frio. A aristocracia local, vivia a opulência da produção salineira e exibia um luxo que remetia aos ares mais europeus do que tropicais. A grande quantidade de escravos pelas ruas nos permite perceber que essa era outra medida de riqueza da nobreza cabofriense. Fogos de artifício, guarda engalanada, banda de música e muitos bailes saudaram a visita mais ilustre que essa terra havia recebido.
Em 1868, a Princesa Isabel e o Conde d’Eu também visitaram a Charitas e foram recebidos pela Irmandade. Esse foi outro momento de esplendor da elite da cidade que vivia sempre na expectativa de poder se exibir.
A sociedade cabofriense vivia devotada aos festejos, principalmente os religiosos. Se agrupando em Irmandades as famílias tradicionais da cidade prestavam algum tipo de serviço de caridade e se esmeravam nos preparativos das festas da santa padroeira Nossa Senhora da Assunção, onde a Matriz e a Praça, atual Porto Rocha se tornavam o epicentro das festividades.
Outra festa de caráter religioso que movimentava todas as classes sociais era a Festa do Divino Espírito Santo. No livro “Memórias de um sargento de Milícias” de Manoel Antônio de Almeida temos um relato interessante de como essa festa acontecia no Campo de Santana na cidade do Rio de Janeiro:
“ Durante os nove dias que precediam ao Espírito Santo ou mesmo, não sabemos se antes disso, saía pelas ruas da cidade um rancho de meninos, todos de 9 a 11 anos, caprichosamente vestidos `a pastora: sapatos de cor-de-rosa, meias brancas, calção da cor do sapato, faixas à cintura, camisa branca de longos e caídos colarinhos, chapéus de palha de abas largas ou forrados de seda, tudo isto enfeitado com grinaldas de flores, e com uma quantidade prodigiosa de laços de fita encarnada. Cada um destes meninos portava um instrumento pastoril em que tocavam pandeiro, manchete e tamboril. Caminhavam formando um quadrado no meio do qual ia o chamado Imperador do Divino, acompanhados por uma música de barbeiros e precedidos e cercados por uma chusma de irmãos de opa levando bandeiras encarnadas e outros emblemas, os quais tiravam esmolas enquanto eles cantavam e tocavam.
O imperador, ... ia no meio: ordinariamente era um menino mais pequeno que os outros, vestido de casaca de veludo verde, calção de igual fazenda e cor, meias de seda e sapatos afivelados, chapéu de pasta, e um enorme e rutilante emblema do Espírito Santo ao peito: caminhava pausadamente e com ar grave.
.... Entretanto, apenas se ouvia ao longe a fanhosa música dos barbeiros, tudo corria à janela para ver passar a Folia: irmãos aproveitavam-se do ensejo e iam colhendo esmolas de porta em porta.”(MACEDO, 1997, p.91-93)
A historiadora Martha Abreu, especialista em festejos populares, aponta as semelhanças entre essa manifestação em todo estado do Rio de Janeiro. Percebemos, entretanto que em Cabo Frio, a partir do relato do Dr. Hilton Massa, essa festa mantinha a característica da inclusão, mas os personagens centrais, que eram o imperador, o mordomo, o alferes da bandeira, o pajem do estoque, acabavam sendo sorteados entre os chefes de família que eram os chefes políticos locais. Interessante junção entre festejos, religiosidade, política e festança que duravam mais de 7 dias, com regalo de comida, bebida, música e danças e as vezes muita confusão.
“Festa de cunho político regional, dela, comentava-se, só os liras participavam, até que certo ano, logo após a missa solene, `a porta da igreja, no sorteio de novo imperador da coroa, do alferes da bandeira, e do pajem do estoque, que seriam encarregados da festa vindoura, o cônego Brito, dizem, colocou seis nomes de jagunços na urna, alterando o sistema da sorte. Esta muito caprichosa, escolheu logo, naquele mesmo dia, o nome do capitão Antônio da Cunha Azevedo, para novo imperador. Acontece, porém, que a festa realizada por este, - e que duraria sete dias -, não acabou, ou melhor, acabou em grossa pancadaria, logo no primeiro dia.” (MASSA, 1996, p.123)
Essa alta sociedade cabofriense, que rivalizava em torno de política e da música, com suas sociedades lítero-musicais se vestia à inglesa, usando muitas vezes os homens ternos de casimira ou longos sobretudos. As senhoras usavam seus vestidos armados de seda ou tafetá, com xales e pequenos chapéus de feltro ou palha italiana. Já os escravos se vestiam do jeito que dava. Os homens em sua maioria de torso nu, portanto calças de algodão cru, de sisal ou sacos de aniagem. As escravas se vestiam com panos de chita coloridos, ou sobressaindo tons brancos de tecidos rústicos com saias compridas em tons escuros ou listrados em cores variadas. Algumas de origem da Costa da Mina usavam turbantes, colares de contas e miçangas e um pano, geralmente bastante colorido no dorso esquerdo cruzando até o lado direito, como se fosse uma faixa.
Uma festa predominantemente negra que acontecia na Passagem, no início de janeiro, era o bangulê, ritual de músicas e danças africanas, ao som de tambores que tomava conta da praça em frente à Igreja de São Benedito, durante as comemorações desse santo que era padroeiro dos negros. Essas manifestações de música e danças eram muito mal vistas pela polícia e geralmente acabavam com uma intervenção violenta da força policial, como encontramos no já citado livro de Manoel Antônio de Almeida, “Memórias de um Sargento de Milícias”.
Novos usos e novas funções do Charitas
Hospital, quartel, Fórum, Escola, Biblioteca
Até 1938, a Charitas recebeu crianças enjeitadas e atendeu doentes pobres. Posteriormente, novos usos foram dados ao imóvel: Quartel do Exército na 2ª Guerra Mundial, Instituto Sagrado Coração de Jesus, Fórum de Justiça e Biblioteca Regional.
Mais recentemente, a Charitas, instituiu-se Casa da Cultura da Prefeitura Municipal de Cabo Frio, subdividindo-se em Biblioteca, Pinacoteca, Museu e Instituto Municipal do Patrimônio Cultural, abrigando também a Secretaria de Turismo. A antiga enfermaria passou a ser residência do Capelão, que guardava o arquivo da Irmandade Santa Isabel e posteriormente ocupada pela Comunidade S.8.
Em 1978 a Charitas foi tombada pelo INEPAC – Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, e em 1982, pelo IMUPAC – Instituto Municipal do Patrimônio Cultural, quando foi parcialmente restaurada .
Em 1993, a Charitas encontrava-se em deplorável estado de conservação. 2 laudos técnicos (1990 e 1993) atestavam que a qualquer momento o telhado poderia ruir e a fiação elétrica pegar fogo. Em outubro de 1993, a Prefeitura Municipal transferiu os serviços públicos que funcionavam na Charitas e interditou o prédio. E na gestão do Prefeito José Bonifácio Ferreira Novellino, contando apenas com recurso financeiros locais, resolveu solucionar o problema. A restauração foi executada num prazo de 4 (quatro) meses, com o custo de aproximadamente R$300.000.00 (trezentos mil reais).
Entretanto, a reforma definitiva, que deu ares de importante monumento histórico da cidade se deu no Governo do Prefeito Alair Corrêa em 2000, quando definitivamente os problemas foram sanados e a restauração do prédio recuperou peças antigas e objetos artísticos que estão integrados ao acervo da Casa de Cultura José de Dome.
Uma homenagem a José de Dome
Um artista e sua Arte
José de Dome nasceu em Estância, Sergipe, no dia 29.11.1921 e morreu em Cabo Frio, no dia 15.04.1982. Seu nome de batismo era José Antônio dos Santos. Já na infância era conhecido como José de Dome, apelido de casa, abreviatura de Dometila, nome de sua mãe, que servia para diferencia-lo dos inúmeros “Josés” de sua cidade.
Realizou sua primeira exposição individual no Belverde da Sé, em Salvador – BA em 1995 e em 1981, sua última exposição foi realizada na Galeria Bonino, Rio de Janeiro – RJ. Pintando durante quarenta anos, realizou mais de cem exposições individuais e coletivas. Radicou-se nos últimos dezessete anos em Cabo Frio. Expões na França, Itália, Peru, México, Inglaterra, Estados Unidos, Espanha, Nigéria e Portugal.
Possui obras em coleções particulares, oficiais e em Museus do Brasil e do exterior, além de possuir murais na agência do Banco do Brasil em Nova York e no Banerj Rio de Janeiro.
Consagraram-no os cabofrienses, denominando “José de Dome” a rua em que morava, o CIEP nº357 de Tangará e criando a CASA DA CULTURA JOSÉ DE DOME.
Charitas a Casa da Cultura de Cabo Frio
Viva a diversidade Cultural !
O Charitas tem sido um dos espaços culturais mais intensos da cidade de Cabo Frio. A diversidade cultural tem um espaço garantido, pois todas as manifestações artísticas, científicas, acadêmicas e culturais passaram e passam por esta Casa. Apresentações de Teatro, Dança, Exposições e cursos de Artes Plásticas, Encontro de Corais, recitais de jovens e consagrados instrumentistas, jogral com alunos da rede pública de ensino.
Assim como exposições de fotografia, como a do conceituado fotógrafo Sebastião Salgado, a maratona fotográfica, exibições de filmes, lançamento de livros, apresentações de espetáculos de bonecos, artesanato, esculturas e na festa “Tudo ao mesmo tempo” que sintetiza essa idéia de ser o Charitas esse espaço plural, onde Artistas e Alunos, Mestres e artesãos transitam com energia nesse saboroso caldeirão cultural, localizado no coração de Cabo Frio.
Bibliografia
ABREU, Martha Campos. O Império do Divino. Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro. 1. ed. Campinas: UNICAMP, 2001.
ALMEIDA, Manoel Antônio. Memórias de um Sargento de Milícias. Porto Alegre: LPM, 1997.
BERANGER, Abel Ferreira. Dados Históricos de Cabo Frio. 3. ed. Prefeitura Municipal, 2003.
CUNHA, Márcio Werneck da. A História do Charitas. Prefeitura Municipal de Cabo Frio, 1992.
ENDERS, Armelle. A História do Rio de Janeiro. 1.ed. Rio de Janeiro: Griphus, 2002.
GUIMARÃES, Célio Mendes. Trajetória da Sociedade Musical Santa Helena. 1. ed. Cabo Frio: s/ed., 1996.
MASSA, Hílton. Cabo Frio nossa terra, nossa gente. 2. ed. Rio de Janeiro: DINIGRAF, 1996.
SILVEIRA, Luiz Carlos da Cunha. O Outro Cabo Frio. 1. ed. Cabo Frio: S/ed, 2003.
Cabo Frio, 14 de Dezembro de 2007
* doutorando em história na Universidade Federal Fluminense (UFF)e Secretário de Cultura do Município de Cabo Frio.
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