sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Artigos Completos VII Congresso de História da Região dos Lagos

III


Nem melhor, nem pior, apenas uma Escola diferente: Os Acadêmicos do Salgueiro e as transformações estéticas e ideológicas na cultura brasileira (1959-1972)

Guilherme José Motta Faria[1]
O início dos anos sessenta, na história do carnaval carioca representou a chegada de uma fase de transformações ideológicas e estéticas. A ousadia coube a GRES Acadêmicos do Salgueiro, que sintetizou suas ambições artísticas e culturais na frase do seu presidente, Nelson Andrade “Nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente”.
Ressaltando personagens em sua maioria negros e mulatos, o Salgueiro trouxe para a linguagem visual e discursiva dos desfiles toda uma gama de representações que exaltavam a origem africana desses personagens e a própria discussão sobre a participação dos negros na formação cultural do Brasil.
A seqüência de desfiles entre 1959 e 1971 revelou esse fulgor de criatividade, de descobertas e de militância tendo o negro e suas peculiaridade, suas mazelas e suas alegrias amplificadas nos sambas e nos desfiles realizados pela escola. Foi a partir do GRES Salgueiro que a temática negra entrou no rol dos enredos possíveis.
Palavras Chave: GRES Salgueiro, transformações estéticas, ideologia, africanidade, cultura brasileira e historiografia.

Arte e Política na Academia do samba
Os desfiles das Escolas de Samba foram se tornando com o passar do tempo, espetáculos grandiosos, que despertaram e continuam a despertar o interesse de grande parte da população brasileira. Fatos curiosos, pitorescos, personagens e o contexto histórico embasando cada enredo, nos permitem passar em “revista” os acontecimentos importantes, as idéias, tendências artísticas e comportamentais que influenciaram e continuam a influenciar nosso panorama cultural.
A história das escolas de samba pode ser trabalhada como chave de compreensão do todo histórico. Os aportes em seus enredos, o trabalho das comunidades, a repercussão dos desfiles, enfim a sua existência e a relação que se estabelece com os poderes públicos (municipal, estadual e federal) nos possibilitam construir a História política contemporânea do país nesse entrelaçar de informações e sensações, onde a plasticidade e, sobretudo o ritmo sincopado do samba-enredo serve de fonte de inspiração para a narrativa histórica e fonte de pesquisa, pois suas letras, a sinopse dos enredos, a materialização das idéias em alegorias e fantasias não devem ser descartados como possibilidade de material a ser analisado.
Revisitar um momento riquíssimo de acontecimentos e debates, onde o ambiente cultural estava extremamente revitalizado é um grande desafio intelectual que visa acrescentar novas abordagens à historiografia sobre os anos 1960 em nosso país. Período intenso da vida política brasileira, onde nos mais diversos segmentos culturais os artistas eram convidados a dar suas contribuições estéticas e ideológicas na formação social do povo brasileiro, externalizando anseios e problematizações.
Sendo assim, a nossa pesquisa, se valendo da relação constante e dialética entre os conceitos de Cultura, Estado, nacionalismo, ideologia e arte engajada, a luz das práticas culturais que eram vivenciadas naquele momento, me permite juntar as peças e reconstruir a história Política e Social do Brasil que nos é contemporânea, a partir do universo das escolas de samba.
Mediados pela inter-relação de um Estado em processo de transformação radical, desde os ventos finais do desenvolvimentismo de JK, da euforia e decepção do fenômeno Jânio, das incertezas do Governo de João Goulart ao desfecho do Golpe militar com seus generais-presidente, os anos 1960 encarnaram de maneira quase holística seu sentido mais profundo da busca de uma nova forma de fazer política tendo a cultura como campo fecundo.
Dessa forma, durante o período estudado ocorreu extensa produção de elementos e bens culturais, que com o imbricamento das questões políticas gerou vários desdobramentos nas nossas práticas culturais, ora de contestação, ora de enaltecimento de ideologias que se contrapunham no cotidiano. Era preciso ter opinião e as artes, de maneira geral deveriam abrir caminhos para essas escolhas e para a formação constante de quadros políticos.
Assim sendo, a partir da análise, tendo o GRES Acadêmicos do Salgueiro como objeto central pode estabelecer a trajetória de uma agremiação, que conectada ao momento vivido se mostrou também engajada. Revolucionou a ideologia e a estética dos enredos abrindo novo campo de discussões acerca da História brasileira e sua interpretação. Discutiram a causa racial, a valorização da ascendência africana e as reivindicações feministas ressaltando mulheres marcantes e até aquele momento esquecidas pela nossa cultura, através de sambas, fantasias e alegorias em desfiles marcantes e amplamente registrados na imprensa carioca.
Com efeito, essas práticas culturais, citadas acima, foram se constituindo em marcas incorporadas ao imaginário e ao cotidiano das demais escolas de samba, da problematização de uma consciência crítica na historiografia, na constituição dos pólos de discussão de gênero, classe e cor que são visíveis até os dias atuais, influenciando nossa maneira de compreender o mundo que nos cerca.
No contexto cultural dos anos 60, o ambiente do carnaval carioca vivia uma constante ação de circularidade cultural, onde se buscava representar na avenida os símbolos, oriundos de valores que vinham sendo “pregados” pelo Estado. Por outro lado o GRES Salgueiro demonstra um desejo de ampliar o leque de discussões e questionar a própria ascensão social por parte dos sambistas e sua tentativa freqüente de demarcar seu espaço numa atitude concreta, pautada no intuito de se afirmar como agentes culturais e, sobretudo, como cidadãos na sociedade brasileira.
O conceito de circularidade cultural[2] demonstra como as idéias e os valores podem ser absorvidos e se metamorfosear, num ciclo sempre renovável, mantendo as características dos grupos sociais. Partilhar manifestações, fundadoras de uma cultura geral, que ganha conotações diversas, não significa abrir mão de suas especificidades, nem mesmo de uma igualdade social. É, portanto, possível conviver com as diferenças e usufruir as manifestações culturais que são engendradas em outras esferas e espaços sociais, possibilitando, para cada classe, uma gama de práticas diferenciadas, resultando em representações próprias para cada uma delas.
Tendo como objeto de pesquisa a cultura produzida por um dos segmentos das classes populares, a análise se encaminha para ter como fundamentos teóricos os modelos trabalhados pelos historiadores Carlo Ginzburg e Mikail Bakthin[3], compreendendo que as esferas sociais produzem cultura, não dissociadas do todo e sim interagindo, captando, apropriando-se de todos os elementos e estabelecendo com peculiaridades a sua visão de mundo.
Nem melhor, nem pior, apenas uma Escola diferente: Os Acadêmicos do Salgueiro e as transformações estéticas e ideológicas na cultura brasileira (1959-1971)

Na história do carnaval carioca, após a fase de estruturação nos anos 1930/40, houve a da consolidação entre o final dos anos 1940 início dos anos sessenta. A terceira fase foi a da transformação ideológica e estética percebida pela abertura que se verificou com novos temas servindo de enredo. A aparente ousadia coube a uma jovem escola, fundada em 1953, a partir de uma fusão entre três escolas de pequeno porte do Morro do Salgueiro, localizado no bairro da Tijuca[4].
A história dos desfiles e do próprio carnaval carioca ganharia um capítulo especial com as apresentações dos Acadêmicos do Salgueiro, que sintetizaram suas ambições estéticas e ideológicas na famosa frase de um de seus presidentes, Nelson Andrade, e que acabou se tornando a marca registrada da história da agremiação: Nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente.
De fato essa diferença foi uma das características fundamentais da escola de samba tijucana, sobretudo quando ela se tornou a plataforma de lançamento de histórias pouco conhecidas pelo público em geral. Ressaltando personagens em sua maioria negros e mulatos, o Salgueiro acrescentou a linguagem visual e discursiva, pertinente aos desfiles, toda uma gama de representações que exaltavam a origem africana desses personagens e da ancestralidade que a própria festa carnavalesca, exacerbada nas escolas de samba representava.
Dessa forma, o Salgueiro trouxe para o centro das discussões as temáticas etnográficas, raciais e o debate em si sobre a participação dos negros na formação sócio-cultural do Brasil. A seqüência de desfiles entre 1959 e 1971 revela esse fulgor de criatividade, de descobertas e de militância, tendo o negro e suas peculiaridades, suas mazelas e suas alegrias amplificadas nos sambas e nos desfiles realizados pela escola.
Foi a partir do Salgueiro que a temática negra entrou no rol dos enredos possíveis. Aparentemente essa constatação pode parecer um grande paradoxo, pois essa manifestação carnavalesca nitidamente teve seu nascedouro nos redutos dos bairros do subúrbio e dos morros cariocas, tendo predominantemente como fundadores e primeiros agentes de legitimação, indivíduos negros e mulatos.
A origem do samba, ao longo da trajetória inicial das escolas de samba não era retratada diretamente e quando essa gênese era retratada chegaram a utilizar uma versão que dizia que o ritmo havia nascido entre os índios[5]. Atraindo para si profissionais ligados a Escola Nacional de Belas Artes, o Salgueiro inaugurou uma parceria diferente no mundo das escolas de samba, mesclando uma visão baseada na formação clássica e acadêmica com o saber e as produções tidas como da cultura popular. No mundo carnavalesco, entretanto, essa aproximação não era uma total novidade, pois os ranchos e as grandes sociedades tiveram em seus momentos de maior expressão essa forma associativa de produção de enredos, alegorias e fantasias[6].
Entretanto, esse novo momento de aproximação, permitiu que na esfera das escolas de samba, manifestação que nos anos 60 estava se tornando hegemônica no carnaval carioca, acontecesse a explosão do fenômeno da temática negra, sua carga de problematização e conseqüentemente a busca da auto-afirmação dentro do contexto cultural brasileiro. Fernando Pamplona, professor da Escola Nacional de Belas Artes foi a principal figura que sintetizou esse encontro entre esferas de produção cultural, propondo os temas e fazendo uma “catequese” junto aos moradores para que aceitassem vestir fantasias de tribos africanas em substituição das tradicionais vestimentas de nobres com suas perucas, sapatos e casacas.
Pamplona confessa que o início dessa trajetória foi turbulento, mas os resultados e, sobretudo a repercussão que os desfiles do Salgueiro foram atingindo permitiram que a comunidade do morro tijucano e de simpatizantes da classe média da zona sul carioca se achegassem cada vez mais à agremiação.
Interessante perceber que essa parceria começou com Pamplona na espinhosa missão de ser jurado no desfile em 1959, onde se encantou com a apresentação do Salgueiro que havia trazido para organizar seu carnaval dois artistas plásticos, o casal Dirceu e Marie Louise Nery.O recorte histórico que escolhi para esse Projeto de pesquisa se inicia com essa parceria e conseqüente desfile. Com o enredo Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, tratando da obra do pintor Jean Baptiste Debret em sua estadia no Brasil e especificamente na cidade do Rio de Janeiro. O artista retratou o cotidiano e as diversas manifestações culturais tendo os negros em sua condição de escravos como protagonistas. A representação das cenas retratadas por Debret, formando quadros vivos na avenida impressionou o jurado Pamplona. O desfile como um todo foi de uma plasticidade intensa, onde predominaram os componentes negros da comunidade do morro do Salgueiro[7].Selada a parceria, o primeiro enredo proposto por Pamplona foi paradigmático em relação ao trabalho que ele desenvolveu na escola, escolhendo exaltar a figura de Zumbi dos Palmares com o enredo Quilombo dos Palmares. Para o desfile de 1960, o artista convidou seu colega do departamento de cenografia do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Arlindo Rodrigues para auxiliá-lo, configurando uma parceria que renderia muitos frutos para o Salgueiro, para o carnaval carioca e para a cultura brasileira[8].Em 1961 com Vida e obra de Aleijadinho, em 1962 com O Descobrimento do Brasil, em 1963 com Xica da Silva e com Chico Rei no carnaval de 1964 o Salgueiro revolucionou os desfiles das escolas de samba trazendo para o centro do evento a cultura brasileira em estado bruto com personagens quase desconhecidos do grande público, mas que encarnava de forma profunda a brasilidade de negros e mulatos.Contando essas histórias de vida onde a superação era uma das maiores virtudes, a ação afirmativa do Salgueiro deu início a um processo de oxigenação das idéias no carnaval através do fenômeno da circularidade cultural que a partir dos seus desfiles fez circular por diversas camadas sociais esses personagens, suas idéias e práticas culturais. Isso se verifica, pois não só o público que assistia aos desfiles e as comunidades que acompanhavam os ensaios se apropriaram destes temas. Os meios de comunicação de massas, o rádio, as revistas de grande circulação e as iniciantes emissoras de tv passaram a se interessar pelo espetáculo das escolas de samba e sua cobertura possibilitou umas abrangências bastante ampliadas das suas ações e temáticas.Se no trabalho anterior sobre a GRES[9] Portela[10] pude constatar que as escolas se apropriavam dos discursos e representações sociais produzidas pelo Estado, pela Imprensa e através do fenômeno da circularidade cultural transformavam essas informações e conceitos em sambas, alegorias e fantasias, com o Salgueiro o processo se inverteu. A irradiação ideológica e estética que trouxe a cena novos personagens, a partir de novas interpretações da historiografia oficial, se tornaram visíveis e reluzentes em diversos segmentos culturais no país. No ambiente teatral, nos filmes, na escultura, na moda, na música popular, na literatura, enfim, em diversos campos da cultura os temas abordados pelo Salgueiro foram sendo apropriados e ampliados.O maior exemplo da afirmativa acima foi a montagem do espetáculo Arena Conta Zumbi em 1965 pelo grupo Teatro de Arena com textos de Gianfrancesco Guarnieri, direção de Augusto Boal e músicas de Edu Lobo. A montagem estreou cinco anos após o desfile do Salgueiro e mesmo que as pesquisas tenham caminhado em direções opostas é inegável que a proposta temática da escola da Tijuca tenha inspirado as letras e melodias do compositor carioca Edu Lobo. O filme Ganga Zumba de Cacá Diegues de 1963, portanto anterior ao espetáculo teatral foi outra obra de arte que sofreu o impacto da pesquisa temática do desfile do Salgueiro.Outro fato relevante é que as próprias escolas de samba, a partir da abertura temática do Salgueiro passaram a tratar também de temas relacionados às questões das condições sociais dos negros, desde a ancestralidade africana, o tempo da escravidão até o advento do samba e a proliferação dos subúrbios e favelas na cidade do Rio de Janeiro. Os enredos de 1965, História do Carnaval Carioca, uma homenagem a pesquisadora Eneida de Moraes, abriu outra série de abordagens que colocavam a cidade e o carnaval carioca como personagens principais da trama escolhida. Cada vez mais assumindo nesta manifestação todos os traços da africanidade, tanto na questão rítmica quanto no gingado corporal que ia se inserindo ao manancial melódico que o samba-enredo ia estabelecendo.Os amores célebres do Brasil e Histórias da Liberdade no Brasil, respectivamente os enredos de 1966 e 1967 novamente traziam a cena abordagens críticas da história do Brasil. Se a primeira estruturava sua narrativa no lado pitoresco dos amores, nem sempre oficiais como o do Imperador D. Pedro I e a Marquesa de Santos o segundo enredo citado trazia em seu bojo uma mensagem contra a opressão que se vivia naquele momento. Várias vezes os ensaios foram interrompidos com corte da energia elétrica e a desconfiança da presença de homens estranhos na comunidade, provavelmente policiais pertencentes ao DOPS que acompanhavam os ensaios para apontar qualquer tipo de conotação política na preparação do carnaval da escola.Era de fato, uma demonstração de coragem por parte da agremiação, escolher o tema liberdade num momento crítico da nossa história política recente, onde o aparato militar montou um rígido esquema de repressão aos opositores ao regime, identificados, ou melhor, genericamente chamados de comunistas, procurando fechar todos os meios de comunicação para não informarem sobre as arbitrariedades cometidas pelos militares no poder. O que chama nossa atenção é o fato de perceber o pioneirismo do Salgueiro permitindo pela via carnavalesca oferecer uma abordagem nova, ácida e mais próxima da humanização dos personagens históricos, sobretudo, os de origem popular, numa nova forma de contar a história brasileira.Em 1968 com Dona Beija – a Feiticeira de Araxá, a agremiação novamente marca sua trajetória de originalidade destacando uma personagem também desconhecida do grande público. Se Ana Jacinta não se inseria no rol dos personagens negros, uma marca já consolidada naquele momento pela escola, a sua menção pode ser incluída no rol das personalidades femininas exaltadas pela agremiação.Com efeito, tanto em 1963, com Xica da Silva, quanto em 1965 numa homenagem a Eneida ou em 1966 com os amores célebres dando bastante ênfase e espaço para as figuras femininas dos casais célebres, estava se tornando outra tradição do Salgueiro dar destaque as mulheres que encarnavam em si o ideal de liberdade e de autonomia. Podia-se dizer que essas escolhas temáticas eram de certa forma, uma adesão da agremiação ao movimento feminista que tomava corpo, com grande intensidade em todo o mundo.No ano seguinte o Salgueiro aparentemente faria uma “involução”, pois, o enredo escolhido Bahia de Todos os Deuses permitiria a escola fazer uma homenagem a um dos estados brasileiros mais representados nos desfiles da nossa festa carnavalesca. Entretanto, por conta dos maus resultados obtidos pelas agremiações que escolhiam o tema, geraram a crença que essa opção daria azar. Mesmo sendo forte a superstição, o Salgueiro conseguiu o contrário, pois, a escola se tornou campeã exaltando a Bahia. O fato é que a abordagem da agremiação era bastante original transcendendo as representações da cultura e do povo da Bahia e investindo também nas representações das divindades presentes no candomblé. Aparentemente por certo pudor ou temor de ir contra a estética estabelecida na festa que mesmo sendo pagã revelava os traços de uma cultura católica, essas imagens do culto religioso sincrético realizado na Bahia e apropriado pelos grupos a princípio negros que de lá partiram, era pela primeira vez utilizada na festa do Carnaval. Essa coragem de mesclar as igrejas católicas e os orixás do candomblé num desfile de escolas de samba e ganhar o título quebraram essa idéia pré-concebida da mandinga ou azar e passaram a ser recorrentes nos anos seguintes pelas demais agremiações.A cidade do Rio de Janeiro foi tema do enredo de 1970, onde também o carnaval em seus primórdios ganhava destaque. Com Praça Onze, Carioca da Gema o Salgueiro fazia uma dupla homenagem, tanto para a cidade quanto para as escolas de samba. Pela primeira vez o reduto da Tia Ciata era cantado em verso e prosa oferecendo ao público e aos sambistas em geral uma versão do nascedouro do samba e das agremiações. O Salgueiro, desta forma criava uma genealogia para as escolas e para o próprio ritmo do samba estimulado pela turma do Estácio de Sá, liderados por Ismael Silva, Bide e outros sambistas que criaram a sincopa característica das escolas de samba. Fechando o período em destaque neste projeto de pesquisa, temos o enredo da escola no carnaval de 1971, Festa para um Rei Negro. É interessante notar que esse desfile fecha um ciclo de propostas temáticas que se tornariam razoavelmente recorrentes na história das escolas de samba. Partindo de uma narrativa que parecia gravitar entre o real e o ficcional a história contada era do menino rei que recebia a visita de uma corte especial vinda diretamente da África abriu caminho para alguns outros enredos que transitavam nessa esfera discursiva.Dessa forma, a escola coroou seus personagens e a sua comunidade por aceitar o desafio e comprar a briga estética e ideológica proposta pelos artistas que estavam criando os desfiles da agremiação. Agora os trajes africanos que foram utilizados eram em sua maioria trajes de uma nobreza africana. A auto-estima e a ação afirmativa geravam o desejo da comunidade do morro do Salgueiro de se exibir com as fantasias afros, numa linhagem da nobreza do continente africano.Essa nova postura foi conseguida ao longo de dez anos, após muitas conversas, alguns títulos e dos desfiles sempre marcantes do Salgueiro na década de 1960. Nessa altura, já participavam do barracão da escola, junto a Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, os artistas Maria Augusta, Joãozinho Trinta, Rosa Magalhães, Laíla, Renato Lage e outros que seriam os principais carnavalescos nos anos seguintes.De fato, a ousadia estética e ideológica proposta pelo Salgueiro geraram frutos e paulatinamente as demais agremiações foram se apropriando das personagens, da esfera simbólica, das representações sociais e artísticas que a escola de samba da zona norte da cidade trouxe para a avenida dos desfiles. O carnaval, naquele momento passava a ser sinônimo de Escola de Samba e esse conceito que já possuía três ícones: Portela, Mangueira e Império Serrano completavam seu panteon com a mais ousada das quatro: a GRES Acadêmicos do Salgueiro.

Referências Bibliográficas
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[1] Mestre em História Política pela UERJ – RJ e Doutorando em História pela UFF.
[2] Conceito trabalhado por Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia das Letras, 1987. Também encontramos em Rachel Soihet, A subversão pelo riso: o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
[3] Mikahil Bakhtin, A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento; o contexto de François Rabelais,São Paulo: Hucitec, UNB, 1987.
[4] As escolas de samba eram as pequenas Unidos do Salgueiro, Depois Eu digo e Azul e Branco.
[5] Esse foi o caso da Portela em 1942 com a Vida do Samba in Dulce Tupy, Carnavais de Guerra, Rio de Janeiro: ASB, 1985, p. 102.
[6] Ver Renata Sá Gonçalves, Os ranchos pedem passagem. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal das Culturas C / CDIC, 2003.

[7] Sergio Cabral, As escolas de samba do Rio de Janeiro, 2.ed., Rio de Janeiro: Lumiar, 2004, p.162.
[8] Haroldo Costa, Salgueiro Academia do Samba, Rio de Janeiro: Record, 1984, p.92.
[9] Essa sigla designa o título que todas as agremiações utilizam antes de seu nome específico e que significa Grêmio Recreativo Escola de Samba.
[10] Guilherme José Motta Faria, O Estado Novo da Portela:circularidade cultural e representações sociais no Governo Vargas, dissertação de mestrado – UERJ, 2008.

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