sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Artigos Completos do VII Congresso de História da Região dos Lagos

II
UM MODELO COLONIAL DE CONVIVÊNCIA

Ângela Maria Maia*


Já desde 1583/1587 quando o Padre Fernão Cardim e Gabriel Soares de Sousa escreveram suas narrativas, as capitanias do Nordeste eram o verdadeiro eixo econômico da América Portuguesa. Existiam outros centros em crescimento como o Rio de Janeiro, São Vicente e Piratininga, mas a sua importância era muito mais estratégica; a vida econômica da Colônia pulsava mesmo animada pelo caldo grosso que escorria das moendas, pelo ruído das caixas de açúcar que embarcavam para a Europa e, essa produção estava centrada nas capitanias da Bahia, Pernambuco e suas áreas próximas.
Nessa região eram intensos os contatos com a Metrópole e também entre os próprios colonos. A população apresentava-se fortemente miscigenada, pois as próprias condições do cotidiano tornavam-se propícias a essa miscigenação. A falta de mulheres brancas, já notada pelas autoridades nos primeiros tempos, se não era mais tão premente, ainda continuava existindo, explicando em boa parte o grande número de uniões dos colonizadores com o gentio da terra e ligações com negros escravos. Nessa população colonial era grande o número de elementos cristãos novos.
Para esses indivíduos, descendentes dos judeus convertidos à força em 1497, estigmatizados em Portugal por uma “marca” muito mais legal do que gene tica ou religiosa, o mundo colonial que se abriu a partir do final do Século XV, representou uma área de afastamento físico das pressões metropolitanas aliada à possibilidade de crescimento econômico.
O Brasil, principalmente a partir da época das Capitanias Hereditárias, abriu aos cristãos novos uma oportunidade maior de refúgio por ser uma área onde a colonização se iniciava e onde, em nome das necessidades dessa colonização, os olhos das autoridades portuguesas se fechavam a muitas coisas.
O desenvolvimento da agroindústria do açúcar que havia sido iniciada desde 1532 com os primeiros engenhos criados por Martim Afonso de Sousa em São Vicente, oferecia grandes possibilidades de enriquecimento para quem se deslocasse para a nova colônia. E também a isso os cristãos novos portugueses não podiam ficar indiferentes.
Para eles a situação em Portugal poderia no mínimo ser classificada como “tensa” . Apesar das medidas contemporizadoras de D. Manoel após a Conversão Forçada em 1497, os cristãos novos passaram a formar um grupo “diferente” no seio da população portuguesa como antes já haviam sido os judeus. Se estes eram diferentes por seus hábitos e crenças religiosas, os cristãos novos o eram porque existia agora sobre eles a suspeita, sempre presente nas leis seletivas e nas estruturas mentais da população, de sua apostasia ou retorno às antigas convicções religiosas consideradas heréticas.
A marca da suspeita era companheira do cristão novo mesmo que este não estivesse mais ligado à velha lei e fosse, mesmo em seu coração, verdadeiramente cristão. Por isso era interessante para ele uma região nova, relativamente longe de uma ação imediata do Santo Ofício e que ao mesmo tempo oferecesse boas oportunidades econômicas. Num lugar assim, os parâmetros seletivos ou excludentes da legislação feita para modelos portugueses, mesmo sendo obrigatórios, não poderiam funcionar do mesmo modo nem com a mesma rigidez.
No caso do Brasil, as capitanias dessa área garantiam refúgio a toda uma população que estava longe de ser religiosamente homogênea. Sendo a Colônia uma área nova e em desenvolvimento, o que importava primeiramente eram o trabalho e o esforço, sendo também mais ampla a possibilidade de participação dos grupos médios e populares na organização da vida colonial, desde que as classes privilegiadas eram representadas nela por pequenos contingentes ligados à ordem metropolitana ou enviados por ela.
Dos cristãos novos que procuraram as terras portuguesas da América, alguns eram convictamente conversos à fé cristã, embora outros permanecessem ainda secretamente judeus, existindo entre eles até mesmo alguns penitenciados pela Inquisição.
A identificação entre cristãos novos e criptojudeus é muito comum; bem como o aspecto da existência de um criptojudaísmo dominante entre os cristãos novos da sociedade colonial têm sido privilegiados na maioria das obras que aborda a presença desse grupo no Brasil. Colocando ambos os problemas em seus limites plausíveis, consideramos que de qualquer forma o ponto primordial a levar em consideração é a grande parcela de elementos cristãos novos que existia na população extremamente miscigenada da América colonial portuguesa. Nessa população, eles marcaram presença em todos os níveis sociais.
Observando as denúncias e confissões apresentadas à Mesa Inquisitorial entre 1591 a 1595 vemos aparecer cristãos novos senhores de engenho como Diogo Lopes Ilhoa, Bento Dias Santiago, João Nunes, Duarte de Sá,Heitor Antunes ou Tristão Ribeiro; mercadores como Diogo Roiz, João Bautista, Jorge Dias de Paz, Simão Mendes, Cristóvão Luis, Manoel Lopes Home3m, Thomas Nunes;mercadores de negros como Bastião Pireira, Fernão de Sousa, Manoel Roiz Villareal; ou mercadores de loja como Álvaro Sanchez,; médicos como Mestre Afonso Mendes, João Vaz Serrão, Jorge Fernandes, Pero Anriques, Fernão Soeiro e Anrique Nunes;lavradores como André Dias,Duarte Nunes,Francisco Antunes e Gaspar Gonçalves; alfaiates como Thomas Lopes, Fernão Gomes,Antonio Mendes e Balthazar de Barros; criados como Domingos Ribeiro, Antonio Gonçalves Rolete e Gaspar Coelho; feitores como Ambrósio Fernandes Brandão, Anrique Roiz, Simão Franco e Ruy Teixeira; trabalhadores de engenho como Gaspar Roiz e Luis Mendes; professores ou “mestres de moços” como Bento Teixeira e seu irmão Fernão Rodrigues.; costureiras como Maria Lopes ,esposa do cirurgião Afonso Mendes ou mestras de costura como Gracia Fernandes, Branca Dias e suas filhas Felipa de Paz e Inês Fernandes; confeiteiros como Diogo Lopes Ramos e Pero Cardoso ou funcionários como Domingos Nunes, João Serrão, Francisco Lopes da Rosa e Paulo D´Abreu; carcereiros como Braz Fernandes e ourives de ouro como Rui Gomes, ou de prata como Nuno Franco; boticários como Gaspar Rodrigues e Luis Antuners ou pedreiros como Balthasar da Fonseca; ferreiros como Manoel Roiz, oleiros como Mateus Franco, carpinteiros como Luis de Oliveira, torneiros como Manoel Antonio ,cirgueiros como Frrancisco Luis, vendeiras como Isabel Martins , donas de pensão com o Clara Fernandes e até prostitutas como Ana Franca. Havia cristãos novos em cargos da “governança” como era o caso dos senhores de engenho Duarte de Sá e Cristóvão Paes d´Altero e até clérigos como Gaspar Soares, Manoel Dias e Manoel Afonso. O próprio licenciado Diogo do Couto, ouvidor da Vara Eclesiástica de Olinda, confessou não saber ao certo se era cr5istão velho ou novo e sobre ele pesava a suspeita de, no exercício de seu cargo, ser favorável aos cristãos novos por serem seus iguais.
Existe então, uma profunda inserção dos cristãos novos no contexto social e na vida cotidiana das populações da região. São várias as referências a elementos cristãos novos em funções muitíssimo comuns no dia a dia da colônia. Neste caso estão, por exemplo, as menções da documentação a mercadores de escravos.
Gonçalves Salvador em seus estudos demonstrou que o tráfico negreiro em Portugal era em grande parte controlado por cristãos novos. Sendo a América portuguesa uma área que estava se desenvolvendo em base do trabalho escravo do africano, podemos imaginar a importância dessa atividade para o desenvolvimento econômico da região baseado na agroindústria açucareira. E a documentação mostra em vários momentos a presença de cristãos novos profundamente envolvidos com o comércio de negros.
Fernão de Sousa, genro de Branca Dias, é citado como tendo vindo de Angola com escravos. Bastião Pireira também é dito como vindo de Angola “com peças”; e Manoel Roiz Villareal viera para Olinda trazendo escravos, mas no momento estava no Porto.
Além do mais, devemos levar em conta que a menção do ofício de “mercador” também compreendia o comerciante que fazia negócios com o Reino ou o Exterior e incluía normalmente em suas mercadorias as “peças” de Angola ou da Guiné. Se observarmos o número de mercadores indicados na documentação e que não apresentam a ressalva que seu comércio era “de loja”, podemos imaginar o volume do comércio maior, incluindo ordinária ou extraordinariamente negros escravos, concentrado nessa região e indiscutivelmente nas mãos de negociantes cristãos novos; o que nos permite afirmar que neste setor prioritário para o desenvolvimento do cotidiano econômico da colônia, sua presença era um fato corriqueiro e aceito com toda a naturalidade.
A criação de um modelo muito próprio de coexistência entre cristãos novos e cristãos velhos na colônia é um fato muito claro desde que compreendamos a formação e os mecanismos de sobrevivência dessa sociedade surgida em condições muito especiais. A vida numa área colonial como a América portuguesa exigia formas de cooperação entre os habitantes num grau desconhecido na Metrópole. Momentos havia em que a vida de cada um dependia de seus vizinhos. As primeiras povoações eram núcleos mais ou menos fortificados mas sujeitos a inúmeros problemas e perigos.
Frei Vicente do Salvador refere-se à criação e fortificação em 1535 por Francisco Pereira Coutinho de um núcleo na entrada da baía de Todos os Santos que depois de alguns anos sofreu ataques de índios, tendo o donatário que fugir para Ilhéus. Neste sítio, anos depois, Tomé de Sousa desembarcou e fundou a cidade de Salvador. Também a vila de Igaraçu na capitania de Pernambuco pode ser citada como exemplo dessas vicissitudes, pois logo depois de sua criação sofreu um grande ataque e cerco dos potiguaras sendo socorrida e salva da fome pelos habitantes da ilha de Itamaracá. Também Olinda, nos seus primeiros tempos, sofreu vários ataques de índios.
Mas a necessidade de cooperação e a dependência entre os indivíduos na colônia não aconteciam apenas em situações que embora não muito raras, podem ser consideradas “de exceção”, como esses ataques de índios ou ataques de piratas às vilas do litoral. Também no dia a dia, quando somente a divisão de trabalho e a colaboração mútua poderiam levar adiante a tarefa a que todos se propunham de construir um lugar para viver e sobreviver numa nova terra ainda meio desconhecida e muito distante de seu país de origem. A vida nesses primeiros centros urbanos aproximava os colonos entre si. Nessa conduta coletiva, diante das necessidades do dia a dia, afastaram-se para um segundo plano os preconceitos entre cristãos velhos e cristãos novos, estabelecendo-se uma maneira de viver colonial mais integrada e cooperativa.
Nas entrelinhas da documentação, mesmo pela ausência de referências a lutas ou perseguições religiosas entre os colonos, aparece a realidade de uma convivência com tensões normais, mas sem choques. Isso não exclui a possível sobrevivência do preconceito estabelecido tanto na legislação vigente quanto na estrutura mental do colono cristão velho. Encontramos vestígio dele em casos como o de uma amiga de Ana Tristão no Rio de Janeiro, que se recusou a casar com um certo Luis Gomes porque ele era cristão novo, permanecendo por isso solteira. Também na preocupação da cristã nova Lianor da Rosa em saber se seriam legítimos para a Lei Velha, os filhos de sua sobrinha com um cristão velho; ou na briga entre Fernão Pires, cristão novo, e sua sogra Caterina de Almeida, cristã velha, que o acusava de te-la expulsado de sua casa depois que ela insistiu para que ele se confessasse, além de manter a esposa de 12 anos de idade trancada em casa e afastada dela que era sua mãe,
E´ justamente a presença desse preconceito que torna mais interessante o modelo de coexistência colonial que, diante da necessidade maior de cooperação, o minimiza e reduz até quase desaparecer do cotidiano, a ponto de não ser mencionado pelos cronistas da época. Esse preconceito só ressurgiu e explodiu em tensões a partir da pressão do Santo Ofício exercida com a sua presença na Colônia.
Podemos então admitir que, apesar da presença de um preconceito latente, a convivência pacífica na Colônia foi forçada pela necessidade que teve a função de aproximar os grupos e aliviar possíveis atritos. Nos documentos surgem cenas do dia a dia em que o relacionamento se faz normalmente.
Gracia de Siqueira,cristã velha, disse que Fernão Gomes, alfaiate cristão novo, quando conversavam sobre “cozinhar gostoso”, lhe ensinou a forma como preparava a sua comida. Antão Martinez, cristão velho mercador, era vizinhos “tinha comunicação particular de comerem e beberem juntos” com Rodrigo D´Avila, moço solteiro e também mercador que ele acreditava ser cristão novo. Gaspar Duarte, cristão novo conversava naturalmente com seu vizinho Amador Gonçalves, carpinteiro cristão velho, sobre o destino da alma dos índios. Ainda além disso, Bento Teixeira e seu irmão Fernão Rodrigues , cristãos novos,eram professores, “mestres de moços”, sem distinção para a origem de seus alunos; e na mesma classe do Colégio da Companhia de Jesus na Bahia, conviviam estudantes de todas as origens religiosas e sociais como Fernão Garcia, cristão velho filho de um carpinteiro, Domingos Lopes, sobrinho do Arcediago da Sé, Martim Lopes, filho de um membro da governança, Simão Adrian, filho de um mercador flamengo e Manoel de Fará, cristão novo, filho de um senhor de engenho e que foi denunciado pelo primeiro de seus colegas citados, por não rezar, não ir à doutrina dos padres e usar roupa limpa aos sábados.
Os fatos demonstram inclusive que essa coexistência independe da presença de judaizantes no seio da sociedade, pois vemos elementos que foram denunciados e julgados na Visitação de 1591-1595 como notórios criptojudeus, relacionando-se antes, normalmente, nos quadros do cotidiano, com os cristãos velhos. A convivência era, portanto, ordinária e natural.
Eram cristãs velhas como Isabel Frasoa e Joana Fernandes as alunas da cristã nova Branca Dias, que conviveram com a mestra e suas filhas durante anos. Beatriz Luis era cristã velha, vizinha de Branca Dias e estava presente na hora da morte de Diogo Fernandes seu marido. Pedro Bastardo, que suspeitava ser cristão novo, esteve no sertão lado a lado com companheiros cristãos velhos e também com alguns deles viveu com o gentio da terra. Os cristãos velhos Agostinho de Freitas e Antonio Gonçalves jantavam normalmente com os cristãos novos Fernão Soares e Diogo Soares no engenho desses últimos. Também Adrião de Góis, cristão velho pedreiro, almoçava com o cristão novo Diogo Nunes em sua fazenda e com ele conversava sobre o pecado da carne. Maria de Faria, cristã velha, estava na casa da cristã nova Maria Alvarez e conversava normalmente com ela mesmo durante a Semana Santa. Também João da Guarda, cristão velho morador em Igaraçu, conversava com outros cristãos velhos Brás Correa Dantas e Estevão Ribeiro, bem como com o cristão novo Brás Fernandes sobre as bulas concedidas pelo Papa.
Na Bahia, Isabel de Oliveira, cristã velha, quando denunciou algumas cristãs novas, Lianor da Rosa, Maria Lopes e Caterina Mendes, disse que era comadre de Lianor e amiga de todas. Gaspar de Palma, cônego da Sé, ao denunciar em 1591 a cristã nova Maria Lopes, disse que ao ir à casa dela para conversar e encontrando a porta aberta,encontrou-a lendo um livro que escondeu ao vê-lo. Vemos nesse episódio que um cônego entrava naturalmente na casa de uma família cristã nova sem mesmo bater na porta e de forma tão íntima que chegou a surpreender a própria dona da casa. A mesma família surge em outro episódio como recebendo duas irmãs cristãs velhas, Caterina e Guiomar Fontes, durante a Semana Santa e ceando em companhia de Madalena Pimentel e sua mãe, também cristãs velhas.
Foi Diogo Lopes Ilhoa, cristão novo dono de engenho e muito denunciado em 1591-1593 , que acolheu em sua fazenda os sobreviventes da expedição de Gabriel Soares de Sousa. O mercador cristão novo João Bautista aparece freqüentando normalmente a casa do arcediago da Sé, chegando a pronunciar-se ali contra a Inquisição. E ainda a senhora Ana Roiz, cristã nova que seria presa e executada pelo Santo Ofício anos depois, convivia harmonicamente com seus contraparentes cristãos velhos, chegando a oferecer, por ocasião da Páscoa, o pão ázimo que fizera, para a irmã de seu genro. A cristã velha Isabel Serrão privava atal ponto da intimidade dos cristãos novos da família Antunes, que se refere a reuniões de amigas em sua casa e nas casas de Beatriz e Lianor Antunes. E ainda Margarida Pacheca, também cristã velha, se refere a uma visita que fez a Beatriz Antunes quando esta estava desgostosa por ter-se desentendido com o marido cristão velho Bastião de Faria. Como vemos a intimidade e a naturalidade nesse último episódio era muito grande para poder existir uma visita de amiga num momento com essas circunstâncias.
A integração dos cristãos novos nesse cotidiano colonial é tão natural que a própria documentação inquisitorial mostra momentos de contato íntimo e amigável entre eles e muitos membros da comunidade religiosa local. Além do já mencionado caso do mercador cristão novo João Bautista freqüentando a casa do arcediago da Sé da Bahia, vemos referências a um relacionamento diário e natural do padre cristão velho Francisco Pinto Doutel com a cristã nova Branca Dias quando ele se apresenta para denuncia-la e diz que falou-lhe muitas vezes na igreja, e em sua casa com “muitas e longas conversas”.
Na própria organização eclesiástica da Colônia, a presença integrada de cristãos novos aparece clara pelas posições que muitos deles ocupam.
Gaspar Soares era capelão de um engenho em Pernambuco; Manoel Dias , clérigo em Olinda. Diogo do Couto, não podia precisar sua origem mas era ouvidor da Vara eclesiástica de Olinda e Manoel Afonso, já falecido na época da Visitação, havia sido meio-cônego da Sé da Bahia.
Também, decorrente da necessidade de cooperação para a sobrevivência individual e social nas terras coloniais, a presença integrada dos cristãos novos em cargos vitais para a vida administrativa das capitanias, se faz notar com muita frequência. Em Pernambuco podemos identificar Duarte de Sá, o vereador mais velho de Olinda; Cristóvão Paes D´Altero, também da governança de Olinda; João da Rosa e Diogo Lopes da Rosa, tabeliães em Olinda; Brás Fernandes, meirinho da vila de Igaraçu e Paulo D´Abreu que era escrivão da alcaidaria de Igaraçu. Francisco Lopes da Rosa era tabelião público e judicial em Filipéia na Paraíba; e na Bahia, além de Phelipe de Guillem que foi provedor da Real Fazenda em Porto Seguro, surgem também Gaspar Curado como capitão de milícia, João Serrão que havia sido almotacel e Pedro Teixeira que era escrivão da almotaçaria.
Ainda dentro do modelo colonial de convivência, um aspecto a ser destacado e refletido é o dos casamentos mistos. O grande número de casamentos entre cristãos velhos e cristãos novos é indicativo, senão de uma integração, pelo menos de uma profunda aproximação resultante da necessidade que forçou uma aceitação natural.
Os casamentos, e ainda as uniões ilegais ou extraconjugais de caráter misto, surgem em todos os níveis sociais desde os mais abastados até os mais humildes. Assim, eles vão desde as uniões dos mais simples como a cristã nova estalajadeira Clara Fernandes com o carcereiro cristão velho Manoel Fernandes; Bartolomeu Garcez, cristão novo obreiro de alfaiate com Maria Gonçalves cristã velha mameluca, na Bahia; ou a de Isabel Martins, cristã nova vendedeira com um cristão velho degredado de nome Barroso em Pernambuco; até os casamentos dos grandes senhores como Garcia D´Avila, sertanista pioneiro da criação de gado na Colônia e senhor da Casa da Torre com a cristã nova Mécia Roiz denunciada várias vezes em 1591 diante do Visitador e cuja mãe era judaizante “de fama pública”.
Com exceção de duas uniões mistas sabidamente críticas e que foram desfeitas com violência, não temos notícias de choques conjugais entre cristãos velhos e cristãos novos . Os casamentos de Bento Teixeira e Salvador da Maia com cristãs velhas terminaram em tragédia pois os maridos mataram suas esposas por infidelidade; mas esse motivo nada tinha a ver com as condições de origem ou religião das vítimas.
Em contraponto a essas uniões infelizes, podemos apontar alguns casos em que uniões mistas eram publicamente sólidas e firmes. O primeiro deles desafiava até mesmo os padrões e limites morais da época. Era a ligação entre o cristão novo João Nunes e a cristã velha Francisca Ferreira, uma mulher casada. Para deixar livre o seu caminho, João Nunes enviou o marido traído para Portugal com uma missão. Quando ele retornou, o escândalo era tão público que o levou a iniciar um processo por adultério; mas João Nunes requereu e conseguiu a anulação do casamento de Francisca diante das autoridades eclesiásticas na Bahia, não aceitando negociar nada com o marido.
João Nunes era um homem poderoso, mercador e dono de engenho, para quem não deviam faltar oportunidades de casamento, compreendendo-se Assim até o interesse de Francisca Ferreira em manter a ligação; mas de qualquer modo o que fica claro é que a origem religiosa não afastou os dois parceiros sendo, ao contrário um fator possivelmente minimizado e relegado diante de outros interesses e realidades.
Outro exemplo de uniões mistas onde os fatores de origem ou religião não interferiram na firmeza da união familiar está na Bahia entre os membros da família Antunes.
Heitor Antunes, cristão novo, e sua esposa Ana Roiz, também cristã nova, chegaram ao Brasil em 1557 acompanhando o governador Geral Mem de Sá. Com eles vinham alguns de seus filhos; outros nasceram na Bahia. Foram ao todo sete: Isabel Antunes, Violante Antunes, Beatriz Antunes, Lianor Antunes, Jorge Antunes, Álvaro Lopes Antunes e Nuno Fernandes Antunes. Todos os filhos de Heitor Antunes e Ana Roiz se casaram com cristãos velhos. Violante Antunes casou-se com Diogo Vaz Escovar; Isabel Antunes com Antonio Alcoforado; Beatriz Antunes com Sebastião de Farias,Lianor Antunes com Henrique Moniz Telles; Jorge Antunes com Joana de Sá Betencourt e Álvaro Lopes Antunes com Isabel Ribeira. Entre todos esses cônjuges Sebastião de Farias e Henrique Moniz Telles eram pessoas de alta projeção na sociedade baiana naquele momento.
Também se casaram com cristãos velhos vários netos do casal de patriarcas, inclusive as netas que se envolveram com a Visitação de 1591, Custódia de Farias e Ana Alcoforado.
E´ interessante o caso do filho Nuno que tomava conta da mãe na época da Visitação. Ele manteve ligações profundas com outra família cristã nova de Salvador, a de Mestre Afonso Mendes e Maria Lopes; chegando a permanecer doente em sua casa. Nesse contato conheceu uma neta do casal e quis casar-se com ela, no que o impediram sua mãe, as irmãs e os cunhados, gerando com isso forte inimizade entre as famílias. A ligação com cristãos velhos era então interessante e defendida com empenho. Nuno permaneceu solteiro.
Contra a família Antunes foram apresentadas várias denúncias ao Visitador entre 1591 e 1593. O velho Heitor Antunes, já defunto na ocasião, foi acusado de dizer-se descendente dos Macabeus, de fazer “esnoga” em sua casa, possuindo uma “toura” e promovendo reuniões secretas de vários cristãos novos. Nuno, o jovem infeliz no amor,confessou ter lido livros proibidos e teve que entregar um deles à Mesa. Mas o grande volume de acusações se concentrou em Beatriz, Lianor e na velha senhora Ana Roiz, acusadas de práticas indicativas de judaísmo.
Diante dos indícios e das confissões das pessoas mais envolvidas, podemos considerar que a família Antunes era realmente centro de um ativo núcleo judaizante; e podemos também ponderar que em anos de convivência tão estreita não se fez sentir nenhuma pressão ou repressão da parte dos elementos cristãos velhos da família contra a crença ou as atitudes de seus parentes cristãos novos, mesmo judaizantes.
Sobre a expressão clara de uma atitude suspeita, apenas um pedido de cautela, quando, diante da recusa da velhinha Ana Roiz, doente, de aceitar um crucifixo, sua filha D. Beatriz lhe recomendou: “Mãe,não nos desonreis, que somos casadas com homens cristãos velhos e nobres.”
Mas essa cautela não evitou a carga de denúncias e as conseqüentes suspeitas do Visitador que recebeu ordens do Conselho Geral da Inquisição para prender a velha senhora. Realmente D. Ana foi presa a 23 de abril de 1593 e embarcada para o Reino a 2 de julho. De suas filhas, pelo menos temos certeza da prisão e interrogatório de D. Lianor em Lisboa. Sobre D. Beatriz há fortes indicações.
E´ fato notável e muito significativo, o esforço que fizeram os genros cristãos velhos de D. Ana para justifica-la, inocenta-la e livra-la da fogueira. Disseram que era muito velha, entrevada e caduca, impossibilitada de dar um testemunho coerente, e que as acusações contra ela só poderiam ter partido de inimigos da família. Seus esforços, porém, não foram bem sucedidos pois D. Ana morreu na prisão e foi queimada em efígie. Mas ainda num último momento ficou demonstrada a união da família; quando Henrique Moniz Telles mandou retirar da frente da igreja de seu engenho o retrato da sogra penitenciada, colocado ali por ordem do Santo Ofício.
Vemos em todos esses fatos uma família mista, com elementos certamente judaizantes, mas intimamente relacionada entre si. Testemunhamos os esforços de seus elementos cristãos velhos poderosos que empenharam seu prestígio, tentando usar o seu poder junto ás autoridades da Metrópole para defender seus parentes cristãos novos, arriscando a sua própria reputação e até ousando contrariar uma determinação do Santo Ofício para preservar a honra de sua estirpe.
Os próprios Sebastião de Farias e Henrique Moniz Telles na sua solicitação ao Santo Ofício em defesa de Ana Roiz, fizeram questão de apresentar os casamentos mistos da família como um ponto positivo que depunha em favor da acusada. Em nenhum momento a realidade desses casamentos foi ocultada ou disfarçada por vergonha; sendo, pelo contrário, ostentada com altivez e orgulho.
Devemos considerar , porém, que os casamentos mistos não significam necessàriamente o desaparecimento de todas as tensões entre cristãos velhos e cristãos novos na Colônia. Tensões sociais existem em quaisquer grupos que sejam distinguidos uns dos outras por uma legislação especial ou discriminatória; mas essas tensões tendem a diminuir, a serem minimizadas, quando existe, por outro lado, uma aproximação normal através da convivência cotidiana e por aí, a aceitação de parceiros conjugais em uniões legitimadas ou não.
E´ sempre bom recordar também que o casamento numa sociedade patriarcal é uma relação que aproxima não só os cônjuges, mas igualmente as famílias. Logo, leva em sua própria essência uma profunda carga de coexistência grupal. Assim, o número expressivo de uniões mistas entre cristãos velhos e cristãos novos nas Capitanias do Açúcar neste fim de século XVI, assume uma conotação indicativa de uma coexistência sócio/familiar que se fazia sem muitos choques, mesmo quando os elementos cristãos novos pertenciam à comunidade que era judaizante.
A existência dessa comunidade judaizante em boa parte reconhecida,em nada prejudicava o relacionamento entre seus membros e o resto da sociedade cristã. Muito pelo contrário, era esta existência real e quase pública que tornava a convivência tranqüila num modelo social novo em pleno vigor na Colônia.
Isso se prova ainda mais quando observamos e refletimos sobre comportamentos que retratam a naturalidade do dia a dia: visitas entre cristãos velhos e cristãos novos; o oferecimento do pão ázimo, a “matzá” judaica, feito por Ana Roiz à cristã velha Custódia de Faria num gesto que poderia no mínimo significar uma disposição amistosa; ou a brincadeira feita em Ilhéus pelo muito denunciado cristão novo Salvador da Maia que escreveu num retábulo quebrado de seu amigo cristão velho “esnoga de João Braz”. Em todos esses momentos presenciamos uma naturalidade tão grande entre as pessoas que permitia um gesto como o de D. Ana Roiz que em outras circunstâncias seria arriscado, ou ainda uma brincadeira que envolvia uma crítica irônica a objetos e valores religiosos mútuos.
Em Pernambuco, Branca Dias dava aulas de costura e abrigava em sua casa várias alunas cristãs velhas em convivência direta e normal tanto consigo quanto com suas filhas. Diogo Fernandes, seu marido, foi recomendado ao Rei de Portugal por Jerônimo de Albuquerque, e na hora da morte foi assistido por D. Brites de Albuquerque, sua irmã e viúva do donatário Duarte Coelho.
Na luta contra os corsários e invasores e na conquista do território aos nativos, momentos vitais para a preservação da obra da colonização, junto aos cristãos velhos atuaram também vários cristãos novos. Nos combates que desalojaram os franceses da Paraíba em 1585 participaram Ambrósio Fernandes Brandão e Fernão Soares com uma ação direta, além de João Nunes com empréstimos. Na conquista de Sergipe aos índios aimorés, participaram lutando lado a lado Diogo Lopes Ilhoa, senhor de engenho cristão novo e Sebastião de Farias, senhor de engenho cristão velho, genro do casal cristão novo Heitor Antunes e Ana Roiz.
Além de tudo isso, os cristãos novos também reconheciam que nessa terra, com a vivência pacífica ao lado dos cristãos velhos, havia imensas possibilidades de progresso e riqueza. Esse espírito e sentimento perpassa os Diálogos das Grandezas do Brasil escritos provavelmente em 1618 mas da autoria de Ambrósio Fernandes Brandão, cristão novo mercador, trabalhador no engenho de Bento Dias Santiago também cristão novo, ambos contemporâneos da 1ª Visitação.
Eram essa coexistência diária e essa conjugação de interesses que marcavam o novo modelo que consideramos existir na sociedade das Capitanias do Açúcar; um modelo social de convivência sem choques, sem perseguições ou perigo de massacres, onde o preconceito era minimizado diante de outros fatores que assim se tornavam social e individualmente muito mais importantes ; onde todos os cristãos novos tivessem o seu lugar no contexto da sociedade com as mesmas oportunidades de sucesso e participação que os cristãos velhos; em que ninguém e acima de tudo o judaizante, mesmo praticando mais ou menos publicamente os seus rituais, fosse por isso cerceado, humilhado, perseguido ou castigado, sendo naturalmente aceito em convivência tranqüila e total participação social.
Era esse modelo que achamos que começava a se desenvolver nas terras do Açúcar quando a Visitação inquisitorial de 1591 ali desembarcou. Cristãos novos e cristãos velhos já estavam fortemente unidos por laços de família e da própria convivência cotidiana. A Visitação remexeu as brasas que já estavam quase apagadas sob as cinzas. O equilíbrio social foi quebrado. O preconceito subiu à tona, acionado pelos mecanismos de pressão psicológica forçados pelo medo. E o tecido social fragmentou-se. A realidade geral unida dividiu-se em várias pequenas realidades individuais assustadas e solitárias.


* Mestre em História - UFF

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