quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Artigos completos - VII Congresso de História da Região dos Lagos


VI
Modernidade: o Tempo da Exclusão
João Gilberto da Silva Carvalho
Doutorando no PPGP – UFRJ

Resumo: Modernidade não se refere apenas a um período de tempo. O conceito abrange um modo de vida e uma visão de mundo típicos do homem ocidental e que foram capazes de promover sua hegemonia ao longo dos últimos séculos. Pela força das armas ou pela sedução dos discursos, o Ocidente se impôs. Aos demais povos, transformados em “outro” pelo processo histórico, restou a submissão ou a exclusão pura e simples; são os exóticos, primitivos ou atrasados que não participaram da formação do que se chama “civilização”. Neste sentido, a modernidade é um tempo de exclusão. Como parte de nossos estudos sobre identidade e alteridade, e com base na teoria das representações sociais, apresentamos o conceito de modernidade e sua relação com os processos mais amplos de exclusão. São reflexões baseadas que estão no centro dos debates hodiernos em ciências humanas e das tranformações sociais que temos diante de nossos olhos, pondo em xeque o conceito ao mesmo tempo em que abre novas perspectivas de debates sobre o relacionamento entre os povos.
Palavras-chave: modernidade, pós-modernidade, identidade, alteridade.

1. Introdução
Modernidade é uma expressão polissêmica e o único consenso possível é quanto ao sentido usual da palavra, de contraposição ao antigo, ruptura ou mesmo indicativo de uma nova etapa. Os tempos modernos figuram na tradicional periodização da história como aquele que sucede o medieval, é a Idade Moderna, que se inicia com a conquista de Constantinopla pelos turcos em 1453. É um marco, pois dada a impossibilidade de se manter o comércio com o Oriente pela via mediterrânea teria impulsionado as Grandes Navegações e todo o conjunto de transformações subseqüentes que marcariam o continente europeu. É um modelo que parte do princípio de que existe uma única história mundial, uma seqüência linear de eventos, cujo epicentro se localiza na Europa. A abordagem tradicional, independentemente de seus fundamentos é teleológica, ou seja, os acontecimentos já estão previstos, arrumados previamente em função do desenvolvimento ulterior. Como numa corrida de revezamento, as antigas civilizações passam o bastão para os gregos, que o entregam aos romanos e assim até o triunfo da civilização européia. Os povos que não atingem os patamares preestabelecidos ficam para trás; os ibéricos, por exemplo. Portugal e Espanha saem na frente, mas não conseguem atingir todos os requisitos da evolução capitalista e são ultrapassados pelas monarquias da Holanda, França e Inglaterra. Neste sentido, modernidade é quase um corolário do desenvolvimento capitalista; e os ibéricos não teriam sido modernos o suficiente.
Os historiadores distinguem moderno de modernidade; por moderno temos uma fase ou “idade” nova em substituição à medieval – uma classificação criada ao tempo do iluminismo e que tem como central a idéia de renascimento, que significa uma ruptura com o modo de vida anterior. A modernidade é a consciência de ser moderno, ter a convicção de ser diferente e expressão desta diferença; significa uma nova mentalidade e uma convicção desta singularidade, baseada em dois vetores: a razão e a história. Por um lado, tal consciência gera o triunfalismo das filosofias da história; por outro, o prenúncio de seu esgotamento, traduzido no pessimismo de Nietzsche, no desespero de Kierkegaard e na utopia de Marx – para nos limitarmos aos autores indicados por Arendt neste processo (2007, p.63). Muito bem arrumado este esquema. Entretanto, nem os renascentistas sabiam do seu renascimento, nem os medievais se percebiam na “idade das trevas” – assim como não sabemos mais quem somos na atualidade, face às mudanças que nos levam diariamente à perplexidade. É possível ainda dividir a modernidade em duas fases (Falcon, 2000) ou três (Berman, 2007) e acreditamos que outras divisões também possam ser feitas, havendo alteração nos critérios de caracterização do processo.
Por trás do período e conceitos que traduzem a modernidade, há um “quebra-cabeça” cuja montagem nos conduz às bases da hegemonia européia: humanismo, absolutismo, burguesia, expropriação camponesa, industrialização, iluminismo, revoluções, cidades, exércitos e burocracias. São peças de um jogo que teve a força de legitimar através da história a visão européia de mundo; é, portanto, uma ideologia de pretensão universal. Algumas das peças parecem não se encaixar adequadamente no tabuleiro, enquanto outras parecem ser de outro jogo, com lógica própria – sem contar que o moderno nem sempre é tão novo, exceto no discurso. Não obstante todas as críticas ao modelo evolucionista – ou aos seus aprimoramentos, como a inclusão de orientais na referida escalada – ainda é desta forma que são estruturados em grande parte os livros didáticos e documentários sobre “o progresso das civilizações”. Enquanto os acadêmicos debatem a modernidade, os alunos do ensino básico estudam em suas aulas de história o moderno como fatos da Idade Moderna, pelo menos aqui entre nós brasileiros ocidentais, cuja influência européia nos currículos é nítida . E assim é consagrado não apenas um padrão de modernidade, como os fundamentos de um imaginário cujas conseqüências ainda se fazem sentir.
Dussel (2005) indica o ano de 1492 para marco de modernidade, quando se estabelece a seu ver uma geografia de caráter mundial. O planeta se torna um só lugar, tendo por centro a Europa. O “mundo em cacos” , formado por ilhas e abismos lendários ganha sentido, a finisterra deixa de ser o fim do mundo, apenas o limite de uma de suas quatro partes constituintes. A partir dos Descobrimentos o europeu se reconhece como um agente atuante sobre um mapa mundi, seja em nome da cristandade, seja para conquistar riquezas em nome do rei. O filósofo argentino declara: “Para nós, a ´centralidade´ da Europa Latina na História mundial é o determinante fundamental da Modernidade” (ibid., p.61).
Wills (2001) enxerga no ano de 1688 as características da Era Moderna e se empenha em costurar os fatos marcantes do período; da brutalidade das minas de Potosi à Revolução Gloriosa, alinhavadas às reflexões de um sábio confucionista na China dos Qing, entre aborígenes da Austrália, sultões, filósofos e reis. Já o historiador da connected historie, Subrahmanyam (2002, p. 291), afirma que apontar o império mongol como ponto de partida para a modernidade pode até soar como impensada ousadia, embora a noção de “descoberta”, presente nas viagens ultramarinas, também se aplique aos “descobrimentos” do comandante chinês Zheng He. O autor não chega a declarar que dos Song aos Ming, portanto entre os séculos X e XVII, o império celeste foi certamente o mais poderoso do mundo, consideradas suas riquezas e poderio militar. Mas nós o faremos mais adiante, tendo como indicador a estreita ligação entre hegemonia mundial, poderio militar e desenvolvimento econômico (Kennedy, 1989).
Fora do âmbito dos historiadores, o sociólogo Giddens estuda a modernidade como parte de sua intenção de formular um conceito de globalização e os caminhos para a Terceira Via – e seu marco é o século XVII (Giddens, 2001). Em sua análise antropológica, Balandier (1997) afirma que o século XVI reuniu todas as características típicas da modernidade. Em Foucault (2007) não há datas precisas e nem a preocupação explícita com o conceito, embora uma nova epísteme possa ser delineada a partir do século XVIII . Os marxistas “clássicos” não utilizaram a expressão modernidade, que não seria compatível com os “modos de produção”, mas as rixas com os chamados pós-modernos ainda rendem bons frutos . Há, portanto, conceitos que por assim dizer concorrem com o de modernidade, como o já tradicional sistema-mundo criado por Wallerstein, que estabelece a Revolução Francesa e o Maio de 68 para marcos inicial e final do período; ou ainda as abordagens “liminares” de Mignolo (2003) e Dussel (2005). Wallerstein refuta a noção de Terceiro Mundo e de forma bastante sintética podemos dizer que seu trabalho é um aprofundamento das teses marxistas. No Brasil, o conceito de “sentido da colonização”, teorizado por Caio Prado , já fazia menção à divisão dos países em função do mercado internacional. E o historiador brasileiro recebeu as mesmas críticas que o sociólogo americano: ênfase excessiva nos processos econômicos. Mas a contribuição de Wallerstein reside em ter atribuído um caráter mais dinâmico ao sistema, de interdependência e desigualdade entre as partes, sem endossar a visão idílica da “aldeia global”. O capitalismo é o “motor” do sistema, cujo dinamismo inaugura uma ordem completamente distinta das precedentes, capaz de inserir praticamente todos os cantos do planeta em sua órbita (Giddens, 1991). Já o conceito de modernidade engloba um conjunto mais amplo de transformações em que a própria noção de mudança é o epicentro do sistema.
A questão de datas não é mero capricho e situar a modernidade no século XVI ou no século XVIII tem caráter geopolítico. Em meados dos Quinhentos a Europa era a porção mais “atrasada” do mundo - levando-se em conta o poderio econômico e o militar, parâmetros que norteiam a classificação de Kennedy (1989) para designar grande potência, em que pese a simplicidade do modelo, menos sofisticado, por exemplo, que o de hegemonia. A China dos Ming dominava a Ásia, enquanto os turcos representavam em pleno século XVI uma série ameaça às nações cristãs. Assim, a modernidade que tem por base o Dezesseis há de incluir não apenas a influência e participação dos grandes impérios do Oriente, como também dos complexos povos do Novo Mundo. É possível apresentar um exemplo que nos envolve diretamente. Nossas pesquisas sobre chineses nos levaram a contribuir em Impérios na História , livro organizado por eminentes historiadores brasileiros, e assim apresentamos o império Ming. O capítulo foi inserido entre “Os Impérios na Época Moderna”, uma inclusão na linha temporal tradicional de outros impérios antes ignorados, como o chinês e o otomano, ainda assim uma perspectiva tradicional.
As datas são componentes de uma concepção de história tradicional, linear e válida para todos os povos. Desde o império romano se estabelece a pretensão de uma história universal no Ocidente que, ao mesmo tempo em que consagra os “eleitos”, abre a possibilidade de salvação aos outros, sejam eles bárbaros ou hereges. A história descortina o sentido da missão ocidental: laica e racional nos objetivos, religiosa nos sentimentos que a motiva. De Santo Agostinho às filosofias da história, história e destino se confundem. O eixo do tempo se estabelece “antes ou depois de Cristo”, ainda que outros povos “persistam” em seus sistemas de datação. Para Giddens (1991), os calendários são traços típicos da modernidade: a preocupação com o controle do tempo e a unificação de práticas sociais à distância. Não há história sem calendário, nem história universal sem um eixo unificador. Os romanos inventaram não só a tradição como nos afirma Arendt (op. cit.), mas também a história universal – ou a história das civilizações como é ostentada em capas de enciclopédias –, uma única via de sentido temporal a ligar os povos a partir de padrões de referência, que tanto pode ser o de qualificação de grande potência, como de modelo de civilização.
A modernidade situada no século XVIII encontra a Europa absoluta – literalmente. É a Europa do Estado-nação despótico, conquistador e voraz, por um lado; racionalista, cristão e civilizador, por outro. À vontade para recriar o seu passado e assim deixar de fora do “processo civilizador” todos aqueles povos ou nações que a ela não se ajustem. É na história, ou melhor, na mitistória que os grandes reinos europeus irão buscar legitimação (Apostolidès, 1993). O Antigo Regime europeu se encontra no auge e próximo do fim; as instituições já se encontram maduras para consagrar ou parir instituições e agentes que formam nossa realidade social no século XXI. A modernidade do XVIII tem como referência a Revolução Francesa, de acordo com o conhecido esquema: ascensão da burguesia e do capitalismo com a destruição da sociedade estamental.

2. Entre muitas modernidades ou a ilusão de ser moderno
O que é moderno tem como contrapartida a tradição ou, na pior das acepções, o atraso. A modernidade nos lembra aquela definição de literatura, de novidade que é sempre novidade. E se o antigo/atrasado não se oferece como uma condição desejável a grupos ou pessoas, justifica-se então a busca pelo incessante moderno/modernidade – afinal, quem não deseja ser moderno? Mas se mantém como uma “natureza” daqueles que a criaram, independentemente dos esforços dos demais povos em atingi-la. Assim, a modernidade não é para todos senão na condição de paródia ou falsificação e o esforço de ocidentalização produz situações no mínimo inusitadas, como as cirurgias para aumento dos olhos que tem ocorrido na China. A história se repete como farsa para alguns e realização de antigos sonhos bíblicos para outros – esta é a diferença entre “eles” e “nós”. Os modernos pretendem resguardar a tradição dos outros ao mesmo tempo em que buscam o paraíso prometido por Deus ou pela Razão, não há tanta diferença assim. Um bom exemplo nos é oferecido por Giddens, em suas palavras:
O termo “tradição”, tal como é usado atualmente, é na verdade um produto dos últimos duzentos anos na Europa. Assim como o conceito de risco, de que falei no capítulo anterior, a noção geral de tradição não existia nos tempos medievais. Não havia necessidade de tal palavra, precisamente porque a tradição e o costume estavam em toda parte. A idéia de tradição, portanto, é ela própria uma criação da modernidade. (Giddens, 2003, pp. 49-50)

Aqui inserimos uma objeção. O mesmo processo psicossocial que criou o moderno também está na base da idéia de tradição, criações do imaginário no sentido em que Castoriadis (1982) o concebe como aspecto fundamental da vida em sociedade. E tal como na relação entre matéria e antimatéria não podem conviver no mesmo espaço: ou a tradição se fecha às novidades ou sucumbe, já que não pode ser moderna sem perder sua suposta autenticidade. Paradoxalmente, não convivem no mesmo espaço, mas não podem deixar de conviver de alguma forma e em alguma instância – um não existe sem o outro, pois o “novo” só existe em relação ao seu oposto.
Na verdade, estabelecer uma oposição pura e simples entre o moderno e o tradicional significa reconhecer o dualismo ocidental e, em última instância, o pensamento moderno. É o que Arendt (2007) quer dizer ao afirmar que os críticos da modernidade pensam a tradição a partir de seus termos; mal comparando, como tentar enxugar água com gelo. Nem toda tradição é uma forma de enfrentamento ao que é novo, já que pode estar associada a necessidades específicas de uma sociedade, como nos rituais em que a memória social é evocada para a atualização de simbolismos. Neste contexto a tradição se mantém sempre nova, pois não há envelhecimento onde o tempo não passa, aceitando as premissas que mitólogos como Eliade (1991) atribuem às sociedades pré-modernas. Já os modernos associam novidade ao progresso, então, parafraseando Marx às avessas, mais que filha da violência a história seria a mãe dos avanços da ciência e das técnicas. O futuro nos reserva a solução dos problemas do presente e cumpre as profecias do passado, quando o paraíso será construído pelas mãos de eleitos, sejam eles fiéis de algum Deus ou da classe trabalhadora. Não há nada de novo em tal postulado e a ironia que estamos empregando talvez contenha certa dose de exagero, mas não há como deixar de perceber que as utopias do Dezenove são modalidades de escatologia. E assim nos afastamos da boa teorização de Dupas (2006), segundo o qual o progresso se diferencia do destino por admitir a falha, o retrocesso; ou estar associado, enquanto ideologia, à ordem – como se estampa na bandeira brasileira. Com boa dose de ousadia e algum respaldo teórico acreditamos que a modernidade laicizou certas posturas religiosas, e assim o nacionalismo, as utopias, o progresso, o social, entre outras tantas faces modernas conservam suas pulsões originais. Mais que simplificação, seria simplismo afirmar que o nacionalismo é simplesmente um tipo religiosidade, mas como nos mostra Anderson (2008), não se pode negar a marca do fervor religioso no processo de criação de imaginários nacionais; o mesmo fervor que desponta nos fenômenos de multidão (Moscovici, 1990). Portanto, as forças do “atraso” podem estar na base, paradoxalmente, da criação de novos fenômenos. No imaginário social, a modernidade tem alimentado o dualismo entre o moderno e o atrasado, consolidado ao longo destes séculos e transformado em thema (Marková, 2006) e que no Brasil tem animado as discussões sobre a identidade nacional, tal como veremos mais adiante. Um exemplo que oferecemos de imediato é a Revolta da Vacina (1904), quando a vacinação se tornou obrigatória por lei na capital da República Velha. José Murilo de Carvalho a descreve em sua complexidade, numa sequência de rebeliões que relativizam o caráter “bestializado” do povo brasileiro, desde a Revolta do Vintém em 1880 (Carvalho, 1987). A rebelião contra a vacinação deixou um impressionante saldo de mortos e feridos à época e algumas perguntas pertinentes à nossa teorização: foi um movimento das massas ignorantes ou uma reação popular ao autoritarismo da medida?
Reação popular contra o avanço da sociedade sobre os corpos também é identificada por Foucault (2008) na Peregrinação de Lourdes – de resistência à medicalização da sociedade. Pelos parâmetros atuais, como nossa sociedade do “politicamente correto” interpreta os fatos, os revoltosos não seriam tão atrasados assim, já que estariam exercendo seu direito de cidadania contra medidas autoritárias. Mas o homem moderno é civilizado e assim vitupera demonstrações de violência. A multidão é primitiva, incontrolável, um resquício do passado; e assim podemos entender, na dicotomia entre o moderno e o antigo, a aversão que os teóricos da multidão possuíam pelo conceito. Ao distinguir multidão e público, Tarde (2005) acentua o caráter ilustrado e polido da atuação pública em geral, que se baseia na informação dos publicistas, da discussão em cafés e noticiário de imprensa. Com efeito, a chamada esfera pública, tão a gosto de Jovchelovitch (2000) e Habermas (1989) é um fenômeno moderno que encontra o seu oposto nos fenômenos da multidão. Moscovici (1990) assinalou o caráter depreciativo dos teóricos da psicologia das multidões, ao contrário de Durkheim, que teria percebido sua conexão com os fenômenos religiosos. O fervor das massas é antediluviano, incontrolável, e pode ser constatado no receio de suas consequências tal como Tarde o descreve. O termo mais adequado seria: irracional. Assim é que as cidades serão gradativamente remodeladas para evitar a irracionalidade e a desordem típicas das aglomerações (Sennett, 2008). A Revolta da Vacina ou os desdobramentos da Revolução Francesa guardariam, nesta perspectiva, certa semelhança com a irracionalidade do potlatch . Se o conceito de público em Tarde tem como base a dispersão das opiniões formadas no anonimado, e ainda assim compartilhadas por todos, imaginemos o que um autor do século XIX, que tinha diante de si somente a força da imprensa escrita, pensaria ao se deparar com todas as pontecialidades das mídias do século XXI! E sem ordem não há progresso, dizem os conservadores; ou se as massas não possuem objetivos claros não conseguem transformar a realidade – esta é a perspectiva mais geral da esquerda, sendo a necessidade ou não de liderança uma distinção entre correntes. Interessante é frisar, como Tarde, que a multidão não segue o líder, o líder segue a multidão; explicação para a impossibilidade de identificar “os cabeças” ou os propósitos de movimentos como a Revolta da Vacina (Carvalho, op. cit.). A psicologia das multidões não evoluiu muito além dos clássicos. Moscovici (id.) destacou o caráter renovador e catártico dos fenômenos de multidão que, em sua teorização, associado a atuação de minorias ativas, possibilita-nos comprrender a mudança social.
Retornemos, pois, ao conceito que nos interessa neste capítulo. E, para complicar ainda mais, a discussão sobre as múltiplas modernidades de Friedman (2006) – da modernidade eurocêntrica à policêntrica é sua proposta. Seu trabalho desconstrução do conceito é iniciado com a distinção entre modernidade, modernismo e modernização e a lógica é muito simples: se não há uma história linear, cada povo tem sua modernidade e seu tempo. A autora demonstra que os europeus não foram ou são pólos irradiadores de novidades de forma unilateral, pois também receberam de outros povos influências que se tornaram símbolos de modernismo (“indigenização”). E acrescentamos por nossa conta não se tratar somente de legado material – batatas, pólvora ou outro tipo de “contribuição” tão habitual nas enciclopédias. Friedman oferece exemplos bastante convincentes de que a modernização do mundo não se faz por mera ocidentalização ou difusionismo eurocêntrico. Para este novo conceito uma definição simples: o Ocidente inventa o Oriente copia – imita e distorce. Porém,
os estudiosos da cultura do quotidiano afirmaram que uma das mudanças mais profundas dos últimos 35 anos foi a forma como as pessoas hoje em dia ouvem música – caminhando de auscultadores nos ouvidos, sintonizadas num mundo muito pessoal de ritmos e letras. Dantes, a música era, geralmente, uma experiência vivida em comunidade, mas agora as pessoas podem optar pela privacidade. De onde surgiu esta forma “moderna” de experiência musical?, perguntei. “Do Ocidente”, respondeu. Não, disse-lhe. O walkman veio do Japão. (Friedman, ibid., p. 87)

Afirma, igualmente, que o ritmo frenético de vida em Xangai ou Hong Kong, entre arranha-céus e pistas de veículos, não significa ocidentalização e sim que a China exerce hoje um papel na economia internacional que já foi seu um dia. A partir de um conceito de modernidade amplo, entende que a combinação de influências recíprocas ao longo da história, criou sistemas alternativos e não um mundo uniforme. Interessante pensar que “se aceitarmos que o colonialismo faz parte da modernidade ocidental, essencial à sua formação desde o século XVI até o século XX, não devemos fechar as portas ao modernismo sem que antes as vozes criativas das colónias tenham a sua oportunidade de falar” (ibid., p. 95). Então, podemos concluir que, na perspectiva da autora, ao retirarmos seu caráter eurocêntrico o conceito revela utilidade. O lado positivo da modernidade também é declarado por Berman (2007) que, em seu segundo prefácio à obra já clássica, mostra-nos o paradaxo chamado Brasília, uma cidade erguida com ares de modernidade e que não foi projetada para incluir o povo (!). E defende os ideais que foram transformados em utopias ou metanarrativas pela abordagem pós-moderna. O lado sombrio e fragmentário do capitalismo não pode ser confundido com as conquistas modernas e a contribuição de seus principais pensadores, notadamente Marx, que a seu ver continua vivo e atual. O otimismo de Berman não pode ser confundido com o de Nisbet e as bases que legitimaram intelectualmente o eurocentrismo, como se pode observar nesta Introdução de um grande clássico das ciências humanas:
No estudo de qualquer problema da história universal, um filho da moderna civilização européia sempre estará sujeito à indagação de qual a combinação de fatores a que se pode atribuir o fato de na Civilização Ocidental, e somente na Civilização Ocidental, haverem aparecido fenômenos culturais dotados (como queremos crer) de um desenvolvimento universal em seu valor e singificado. Apenas no Ocidente existe a “ciência” num estágio de desenvolvimento que atualmente reconhecemos como “válido” [...] (Max Weber, 1981, Introdução).

Claro que se trata de uma perspectiva datada, definições para “Ocidente” e “Civilização” são hoje encaradas em sua historicidade. Para Berman, a única análise abrangente acerca da modernidade está presente na obra de Foucault, realizada sob o ponto de vista da totalidade, que a retratou, no entanto, com os ares tenebrosos das paredes dos manicômios, presídios e panópticos (Berman, ibid., p. 46). Com efeito, a crítica inflacionada ao iluminismo muitas vezes esquece a beleza de certos princípios – Sapere aude!, proclamava Kant como ideal para a Ilustração, que pressupõe a liberdade como resquisito fundamental a qualquer ousadia. Os marxistas em geral são categóricos ao afirmar que tais pérolas do idealismo encobrem interesses materiais e que a generosidade da Ilustração é a contrapartida intelectual ao avanço da burguesia. Mas atribuir aos philosophes do século XVIII todas as consequências do racionalismo não é apenas uma hipostasia; transformou-se em jargão aos críticos da modernidade. E mais, como já afirmamos, significa retirar dos processos sociais mais amplos seu sentido e os transferir às idiossincrasias de pensadores.
Curiosamente, contrariando o otimismo de Berman, regimes autodeclarados marxistas suprimiram a liberdade formal que alimentou historicamente outra representação: liberalismo, democracia e liberdade, de um lado; socialismo, centralização e autoritarismo, de outro. Uma oposição que, no auge da Guerra Fria, também se expressava na pelo confronto entre o moderno e o atraso (Dupas,2006, p. 113). E mais uma vez podemos recorrer a um princípio caro à estrtuturação dos mitos: a cada período de decadência corresponde um período glorioso, de redenção do passado (Eliade, 1972). Para fugir dos exemplos já muito utilizados no Ocidente, basta-nos ter em mente a sucessão de dinastias chinesas, na qual um rei virtuoso substitui um tirano decadente e pervertido. Mas os chineses possuem um modo peculiar de destruir o passado decadente. Os monumentos e construções são colocados abaixo, a memória não reside em blocos ou artefatos e sim na caligrafia, arte por excelência para os chineses. Os lugares de Memória de Nora (1993), que no Ocidente indicam espaços carregados de valor histórico e afetivo, têm nas escrituras ideogramáticas o seu equivalente – afirmação que chega a ser surpreendente considerando toda a tradição que se atribui aos chineses, mas feita de forma convincente por Leys (2005) ao demonstrar os muitos antecedentes à fúria da guarda vermelha maoísta. Preservar a história e desprezar a arquitetura significa que o arquiteto é mais importante que sua criação; o que é sólido se desmancha no ar, mas pode ser preservado em ideogramas – uma concepção no mínimo diferente e que tem o poder mais uma vez de relativizar o atraso. Já foi o tempo em que os chineses encarnavam o atraso; o império imóvel; gigante adormecido, entre outras metáforas pouco lisonjeiras. Mas as imagens da modernização chinesa insistem em seu caráter bizarro. Apresentamos como exemplo duas chamadas de matéria de revista de grande circulação no Brasil :

OCIDENTE MADE IN CHINA:
Clonar os países mais ricos do mundo em seu território. É a mais nova receita chinesa para construir cidades ao gosto das empresas estrangeiras e, mais ainda, dos próprios chineses.

36 BIZARRICES SOBRE A CHINA
Não é que os chineses sejam esquisitos. Apenas vão ao mercado de pijama, limpam o nariz em público e, quando resolvem virar uma potência, deixam o mundo chocado com seu jeito de pensar.

Se os chineses acham bizarras as formas como a acupuntura ou as artes marciais foram recentemente apropriadas pelo Ocidente não sabemos. Os exemplos acima se inserem numa tradição que remonta aos relatos e preconceitos de antigos viajantes ao reino celeste. Em resumo, os chineses se modernizam enquanto cópia distorcida, assim como no passado os japoneses o fizeram durante a denominada Revolução Meiji, no século XIX. Os chineses ingressam no mundo globalizado de maneira bizarra, seja por seus “costumes estranhos” ou por não aceitarem as “normas civilizadas” de competição econômica. Não respeitar patentes ou se alimentar de bichos repulsivos; manipular acessos à internet ou cuspir em público – os exemplos podem ser multiplicados apenas para mostrar que são diferentes, é o que a imprensa e seus cronistas têm feito, quanto mais agora que a China, paradoxalmente, é a grande vedete do capitalismo mundial. Uma pergunta parece saltar aos olhos, mesmo àquele que não conhecem a obra de Norbert Elias: se não participaram do mesmo processo histórico (civilizatório), por que deveriam respeitar normas de concorrência econômica que não são e nunca foram respeitadas por seus criadores?
Ao tempo das Navegações os chineses foram encarados como passíveis de conversão – e agora de modernização - mas o mundo árabe significou e significa a fronteira final do diálogo eu-outro nos termos ocidentais. Os inféis se transformaram em terroristas e representantes máximos do atraso; o fundamentalismo não apenas resiste como cresce. O raciocínio ocidental, portanto, é simples: chineses e japoneses são estranhos, mas a diferença que existe em muçulmanos os torna perigosos à existência. Tal incompatibilidade pode ser expressa de forma erudita nos seguintes termos:
Minha hipótese é que a fonte fundamental do conflito neste novo mundo não será primordialmente ideológica ou econômica. As grandes divisões entre a humanidade e a fonte principal do conflito serão culturais. Estados-nação continuarão a ser os atores mais poderosos nas questões mundiais, mas os principais conflitos da política ocorrerão entre nações e grupos de diferentes civilizações. O choque de civilizações dominará a política global. As rupturas entre as civilizações serão as frentes de batalha do futuro (apud Said, 2003, p. 42).

O profeta do juízo final se chama Samuel Huntington e criou a expressão de algum sucesso “choque de civilizações”, ou o confronto derradeiro entre o a modernidade e o atraso – poderíamos aduzir por nossa conta, entre a luz e a escuridão. A luta contra os “bárbaros” já recebeu diferentes nomes e não é nenhuma exclusividade ocidental, baseia-se em preconceitos e interesses que têm alimentado historicamente os conflitos entre os povos. Os chineses construíram no passado a Grande Muralha que agora tem nova versão na fronteira entre Estados Unidos e México. Mas como acentua Said (2003; 2007) em relação ao “orientalismo”, as diferenças são baseadas em generalizações grosseiras, criadas a partir de juízos superficiais. O outro está em toda parte e não apenas nos níveis exteriores, pode ser o vizinho ou à nação distante, mas também está dentro de cada um – o inferno é sempre o outro não importa em que número ou onde está. Ademais, na atualidade, chineses, muçulmanos e gente de diferentes etnias são visíveis nos labirintos de qualquer grande cidade, sem contar os outros criados por exclusão interna e agrupados em guetos, bandos e tribos. Não é mais possível exportar os “indesejáveis” para colônias distantes; o que explica pelo menos em parte a criação de leis que assegurem a convivência nos aglomerados urbanos. Leis, políticas educacionais e reflexões de intelectuais: não apenas sob defesa, o outro agora está na moda. A ascensão da diferença talvez referende outra perspectiva igualmente polêmica, a de que não seja possível mais falar de modernidade e sim de pós-modernidade. Referência no assunto, para Lyotard (1986) há uma ruptura visível e falência do projeto moderno, que pode ser traduzido na descrença às grandes narrativas e, em última análise, à racionalidade científica. Transformada em discurso, a busca pela verdade seria um exercício de poder, contra o qual a condição pós-moderna se rebela na pluralidade das manifestações da cultura. E a ciência não ocupa lugar privilegiado neste processo, é apenas uma modalidade a mais de compreensão e não sua instância legitimadora. A polêmica que opôs Habermas e Lyotard se fez em torno das possibilidades da razão humana em se emancipar, nos termos de Habermas, assim definida (a polêmica):
Lyotard introduz a idéia de condição “pós-moderna” como uma necessidade de superação da modernidade, sobretudo da crença e na razão emancipadora [...] Habermas, por sua vez, defende o que chama de “projeto da modernidade”, considerando que esse projeto não está acabado, mas precisa ser levado adiante, e só através dele, pela valorização da razão crítica, será possível obter a emancipação do homem da ideologia e da dominação político-econômica.

Como vimos anteriormente novas abordagens retiraram do debate seu caráter exclusivamente europeu. Portanto, não se trata de saber se a Europa vive ou não agora uma condição pós-moderna. Além das múltiplas modernidades definidas por Friedman (op. cit.), aqueles que historicamente foram “outros”, objeto de estudo, inserem em suas análises um dado novo: a colonialização como elemento decisivo da modernidade. Tradicionalmente, desde o século XIX, a modernidade é pensada como criação européia, por ter criado diferenciais ou vivido processos históricos exclusivos se comparados a outros povos, como a ciência, a urbanização, a Reforma e o humanismo, entre outros. Autores como Dussel (2005, 2007) e Mignolo (2003) afirmam que somente as riquezas do Novo Mundo permitiram o “salto” europeu. Não apenas pela prata que lhes permitiu acesso ao mercado asiático e mercadorias que não tinham como produzir, pois é o enriquecimento das cortes irá financiar os luxos – “as chinesices” – e a consolidação dos Estados-nação e seus exércitos, como também pela produção de alimentos que acompanharia o crescimento da população européia . Portanto, nesta vertente, o dado fundamental da centralidade européia no período é a colonialidade; o discurso da modernidade deve, então, incorporar ou levar em conta pelo menos os saberes subalternos, para utilizarmos a expressão de Mignolo (id.).
Mais instigante ainda a perspectiva de que a modernidade seja apenas um tipo de engenharia simbólica, uma criação legitimadora de processos sociais complexos, como se entende da obra de Latour, cujo título é uma tese: Jamais fomos modernos (1994) . Tanto a modernidade como a sua superação, a pós-modernidade, baseiam-se na aceitação do “trabalho de purificação” a distinguir humanos e não-humanos – que poderíamos “traduzir” simplesmente pela oposição entre cultura e natureza, um thema clássico. É possível ir adiante com nossa “tradução”, identificando de imediato essa expressão de nosso agrado, engenharia simbólica, que contém simultaneamente o aspecto criativo do termo engenho e a precisão das engenharias da ciência. A engenharia moderna foi construir um edifício de símbolos capazes de classificar e ordenar o mundo.
Em outra obra Latour (2002) nos oferece um bom exemplo capaz de tornar mais palpáveis tamanhas abstrações. Somos modernos porque não acreditamos em fetiches – palavra que oferece na etimologia e evolução uma aula de história da dominação. Os idólatras acreditam em fetiches, que artefatos produzidos por suas próprias mãos sejam sagrados, como os nativos da África Ocidental (Latour, ibid., p. 15). Não é somente uma questão de sacrilégio, mas também de ignorância, pois na lógica do conquistador somente bárbaros seriam incapazes de perceber que objetos humanos não podem ser divinos. Mas se não há diferença entre os ícones portugueses e os ídolos guineenses, a não ser no discurso, todo o resto é imposição. E logo no Prólogo desta obra de Latour há um interessante relatório de autoria de um conselheiro coreano em missão na China e que expressa o mesmo estranhamento:
Diz-se que os povos de pele clara que habitam a faixa setentrional do Atlântico praticam uma forma particular de culto às divindades. Eles partem em expedição a outras nações, apropriam-se das estátuas de seus deuses, e as destroem em imensas foqueiras, conspurcando-as com as palavras ‘fetiches! fetiches’, que em sua língua bárbara parece significar ‘fabricação, falsidade, mentira’. Ainda que afirmem não possuir nenhum fetiche e ter recebido apenas de si próprios a missão de livrar as outras nações dos mesmos, parece que suas divindades são muito poderosas.

Não temos a pretensão de realizar uma análise bibliográfica exaustiva sobre a modernidade; o que é interessante do nosso ponto de vista é não só a intensificação dos debates, como seu significado. Os modernos declaravam que sua civilização era um guarda-chuva sob o qual se abrigavam todos os povos – e talvez o nome deste guarda-chuva seja razão, instrumental ou emancipatória, tanto faz, o eurocentrismo é o mesmo. A oposição entre modernos e pós-modernos expressa a crise e o remorso de sociedades que confiavam cegamente nos seus ícones, como a razão, a civilização, a liberdade, entre outros tantos deste edifício chamado modernidade. A intenção de reformá-lo ou demoli-lo significa mais que uma controvérsia entre intelectuais. O fato de se discutir tanto o conceito pode significar que a ruptura de suas bases está em curso ou então, simplesmente, que se trata de falso dilema e neste caso a modernidade sequer teria existido, a não ser como discurso autolegitimador. Curiosamente, não deixa de ser uma metanarrativa a crença de que um conceito possa explicar tanta coisa e que agora simplesmente expirou sua validade. Durante o período moderno teriam sido criadas as bases sociais, econômicas, políticas e intelectuais que até hoje permeiam as instituições, os costumes, o imaginário e as representações sociais do mundo ocidental. Um modo de vida que se disseminou de forma sutil ou violenta – não de forma unilateral, é verdade – capaz de fascinar a uns ou se impor a muitos outros povos.
Não nos parece que a emergência de nações como Índia e China deem respaldo a tese das múltiplas modernidades. O fato de ter sido o Japão a lançar o telefone celular ou que em Shenzhen se localize o maior polo de fabricação de gagdtes do mundo (Agtmael, 2009) não os torna modernos ou indica que tenham destruído suas tradições. Giddens (2003) nos preveniu quanto ao uso mecâncio da idéia de tradição – espécie de fundo de pureza original de culturas oprimidas. E é radical a respeito: toda tradição é inventada. A perspectiva tradicional, segundo a qual o Ocidente disseminou e impôs unilateralmente sua cultura mundo afora pode ter certa dose de ingenuidade ou mesmo de ideologia; mas relativizar tal pressuposto tem limites. Ao longo do período ocidental dito moderno um modo de ser e viver foi consolidado e tornou-se capaz de interferir em qualquer canto remoto do planeta, mesmo que indiretamente. As alterações climáticas estão aí para referendar nossa assertiva: um problema em escala global criado ao longo da industrialização. É inegável que este “modo de vida” se impôs como referência mundial, mesmo que sua criação não seja inteiramente ocidental e ainda que se leve em conta as especificidades – as combinações e apropriações locais – existe uma lógica comum aos mecanismos que, em conjunto, caracterizam a modernidade. Se o walkman “veio” do Japão pouco importa, a invenção é parte da dinâmica econômica do sistema; ou, na atualidade, pouco importa o regime polítco chinês, inteiramente submetido à lógica da reprodução do capital internacional. Os exemplos podem ser de outra ordem, de natureza política ou social entre outros, mas o essencial é a existência de fatores que servem de substrato a processos tão gerais e em escala global. A modernidade, portanto, une tais fatores no mesmo sistema que não é privilégio desta ou daquela nação; e ao abranger um período de tempo tão longo pode ser subdividido, como o fazem autores aqui citados, Giddens (2002) e Dussel (2007), por exemplo. Um constructo que emerge da observação de situações que possuem lógica própria, mas que se relacionam claramente à construção da hegemonia ocidental nos últimos séculos. Aceitar o “roubo da história”, para usar a expressão que estampa a capa do interessante livro de Goody (2008), não diminui o feito do “ladrão”, que foi capaz de legitimar seu “crime” ao apagar as provas contrárias. Mesmo que aceitássemos as múltiplas modernidades ou o papel decisivo da colonialidade, ainda assim temos que concordar com Giddens (1991) de que se trata de um projeto europeu.
Os modernos reescreveram sua história no século XIX, buscando as origens adequadas e eventualmente incorporando as “contribuições” de outros povos. Para a grandeza imaginada dos ocidentais, os fenícios, chineses, turcos, entre outros povos, tinham que ser eclipsados da história. O fato de enxergarmos com clareza tal projeto de autolegitimação pode ser uma evidência de que não estamos mais engajados nele, independentemente do conceito que os teóricos ofereçam, seja a modernidade tardia de Giddens (2002) ou a pós-modernidade de Lyotard (1986). Assim como o feudalismo, a modernidade não é um fenômeno universal (Goody, ibid.), embora seja característica desta a expansão continuada de sua esfera de influência. O fato de utilizarmos até agora expressões como “lógica própria” e “instituições pensam” (Douglas, 1998) não significa que as demais instâncias da vida humana sejam simplesmente determinadas por estruturas impessoais e muito menos universais.
A relação entre o global e o local está no centro dos atuais debates que envolvem a globalização – a nova cria da modernidade. As especificidades não podem esconder as ligações mais gerais, as conexões que se tornaram praticamente óbvias ao longo do tempo. O Estado-nação, por exemplo, é um tipo de organização social e política que assume contornos diferentes em cada localidade e a ciência política dispõe de muitas categorias para descrevê-lo, em função do regime ou da forma de governo e, ainda assim, será um Estado-nação – um espaço delimitado, uma comunidade imaginada em termos identitários que dispõe de governo e autonomia. Mas não há como fugir da impressão de arbitrariedade em relação aos estudos de modernidade. Algumas perguntas se impõem diante de sentenças lapidares: De quem se fala? Quando? Quem fala?
A modernidade líquida de Bauman (1998, 1999) se torna gasosa ao tentarmos “pegá-la”; sentimos vontade de aderir ao seu raciocínio envolvente, mas não sabemos exatamente a quem ele se refere, se suas reflexões incluem a nossa banda de mundo. A pós-modernidade trouxe a insegurança e oferece em troca a solidão dos shoppings e comunidades virtuais, afirma o sociólogo – uma análise que parece pertinente a qualquer grande centro urbano. Subitamente, nós que nunca fomos modernos, somos admitidos pela porta da frente à nova engenharia simbólica em curso. Entretanto, se a modernidade foi um projeto europeu, nem todos estão dispostos simplesmente a adentrar o novo edificio. O panorama da pós-modernidade não é promissor e a nostalgia dos téoricos utiliza de tons sombrios para descrever o presente, o que não chega a ser novidade em termpos de crise ou transição .
Há uma tradição historiográfica, denominada iluminista e bastante criticada nos últimos tempos, que considerou os séculos posteriores à queda do império romano como um período de atraso, a chamada Idade das Trevas. E que no século XV-XVI, o Renascimento teria resgatado o homem para o centro da história, recolocando-o no moldes da tradição greco-romana. Faz parte das lições escolares ensinar que as Navegações, a Reforma, a Reurbanização, o Capitalismo e as Invenções são diferenciais europeus, os fatores que explicam seu caráter pioneiro no mundo moderno. A historiografia recente lança sérias dúvidas quanto ao pioneirismo ou a relevância de tais fatores. Não cabe aqui um aprofundamento, mas é possível demonstrar com facilidade e com base em bibliografia, que em relação às navegações os chineses foram os reis dos mares até o século XV, com direito a Marco Polo, nas peregrinações de Faxian; cronistas como Ma Huan e seu herói, Zhen He (Fernández-Armesto, 2009). Se a Reforma trouxe um ingrediente a mais nos conflitos europeus e algumas contribuições insuspeitas como a tradição hermenêutica, afirmá-la como diferencial é renegar o papel dos católicos ao longo dos tempos modernos. Existe, sim, o peso do clássico weberiano que inclui a ética protestante como base do sucesso do capitalismo americano (Weber, 1981). Mas o Ocidente conheceu o “atraso” medieval enquanto as cidades turcas e chinesas resplandenciam e mesmo o caráter estático europeu tem sido posto em xeque. Chiara Frugoni (2007), por exemplo, apresenta-nos uma relação de invenções da Idade Média até hoje fundamentais às nossas vidas – óculos, vidros coloridos, botões e outras tantas, que desmitificam a idéia de que o Renascimento inaugura um tempo de grandes invenções. Moscovici (1990) utilizou os reformadores como exemplo de minorias ativas, mas o desdobramento dos fatos acaba por relativizar seu caráter revolucionário. Basta-nos citar a posição de Lutero na revolta camponesa de 1524, sua condenação ao movimento e a consequente institucionalização do luteranismo (Falcon, 2000, p. 42); ou, ouvir as considerações de Jean Delumeau:
E de início seria errado imaginar a Reforma como um corte completo com o passado religioso dos séculos que a precederam, e também acreditar que os países protestantes não se inspiraram nas obras de espiritualidade publicadas no mundo romano do século XVI. (Jean Delumeau- 2, 2003, p. 335)

É possível, portanto, descaracterizar a ruptura moderna tão simplificadamente esboçada pela tradição. Há reflexões sofisticadas como os conceitos de territorialismo e capitalismo, com os quais Arrighi (1996) tentou explicar a dinâmica moderna – os ciclos de acumulação sistêmica. Grosso modo, servem para distinguir a lógica de acumulação de territórios em contrapartida à de acumulação de riquezas. Também Kennedy (1989) destacou a geopolítica como diferencial: estados beligerantes e que não se submetiam à centralização é sua explicação para o dinamisno europeu. Independentemente da possibilidade de isolar causas que expliquem a ascensão européia, o fato é que houve a imposição de uma hegemonia. Mas não a hegemonia ou a liderança de nações isoladas de que se ocupam tais autores e sim a expansão e consolidação de uma visão de mundo ou mentalidade, como se dizia na terceira geração dos annales. O conceito de hegemonia tal como formulado por Gramsci implica em dominação não apenas pelos mecanismos de subordinação econômica ou pela força das armas, como também por mecanismos sofisticados da cultura – ou superestrutura, nos termos do autor (Gruppi, 1980). É um conceito aplicado originalmente à luta de classes e nos termos marxistas tradicionais a dominação entre nações, o imperialismo, é econômico e militar. A idéia de hegemonia que transcende a pura coerção maquiavélica, entretanto, revela-se heurística ao ser aplicada aos sutis mecanismos do relacionamento entre os povos. Digamos uma hegemonia que se faz em rede, que aceita o caráter difuso das relações de poder, mas sem a ingenuidade de acreditar que os envolvidos estão em pé de igualdade. O que nos interessa precisamente são as instituições criadas na modernidade e que se tornaram hegemônicas, capazes de serem imaginadas como modelos adequados e desejadas em diferentes contextos sociais. Portanto, desejo e imposição; senão vejamos:
Um estilo de civilização. Ser moderno é sinônimo de civilizado, de agir e pensar em conformidade com padrões estabelecidos por uma etiqueta social. Um bom cristão, educado e polido – que se fez na sociedade de cortes; nas palavras de Erasmo: “falhar na educação é fazer do ser humano um monstro” (Erasmo de Rotterdam, s/d, p. 32). Aliás, o conhecido representante do pensamento renascentista recebeu atenção especial de Elias (1993) em sua análise sobre o processo civilizador. Interessante constatar em De Pueris polêmicas que nos são familiares, alguns exemplos: “Paternidade não se reduz aos atos gerativos”; “Riqueza não dispensa instrução”; “O direito à educação nasce no berço”; “Não confundir educação com afetação” (Erasmo de Rotterdam, ibid., sumário). Muitas das linhas gerais do que entendemos por educação na atualidade estão claramente formuladas em seu manual do século XVI. As bases morais da sociedade, tão caras ao pensamento de Durkheim , econtram em Erasmo um ancestral.
O inventário de Elias (ibid.) nos mostra o surgimento de um padrão europeu derivado dos rituais da sociedade de corte. Enquanto Anderson (2004) se preocupou em retratar as lutas políticas e as intrincadas linhagens do Estado absolutista, Elias procurou observar como tal configuração do poder institucionalizado tem como contrapartida a criação de hábitos e transformação de costumes. A concentração de poder nas mãos de príncipes é o resultado da “domesticação” de uma nobreza guerreira, que se tornou dependente do Estado. Foram-se os tempos de belicosidade do cavaleiro medieval, sequioso por conquistas e glórias...

3. Considerações finais
As discussões sobre modernidade e pós-modernidade ganharam destaque nos últimos anos por conta das transformações que assistimos em praticamente todos os segmentos da vida em sociedade. A consolidação de um padrão de vida civilizado representou, na prática, a criação de um “outro” não-civilizado – exótico, bárbaro, primitivo, atrasado – não importa o termo, pois na prática este “outro” podia ser dominado, eliminado ou escravizado. As cruzadas que se realizaram em nome da Cruz se transformaram nas muitas guerras travadas em nome dos ideais de civilização e progresso. A sofisticação dos discursos, das mercadorias ou ainda a potência das armas tornaram o referido padrão um modelo a ser copiado e seguido, quando não, imposto. No limite entre a argumentação ideológica e o cinismo, aqueles que foram exterminados ou escravizados deveriam ser gratos aos seus opressores. Na atualidade, a emergência do “outro” é visível na nova configuração de poder mundial, que enseja abordagens e pesquisas instigantes e demolidoras de velhos preconceitos.

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Artigo do VII Congresso de História da Região dos Lagos

Sociedade de Rede
Cultura, Identidade Social e Histórias de Pescador no bairro da Gamboa
(Cabo Frio-RJ)

Rafael Peçanha de Moura
Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais
UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

Resumo
O artigo em tela trata de pesquisa ainda em fase de elaboração, de cunho etnográfico, tendo como objetivo o estudo da identidade social e cultural dos pescadores artesanais do bairro da Gamboa, na cidade de Cabo Frio, Estado do Rio de Janeiro. Ao levantar os principais objetos simbólicos, as relações de contrastividade e os núcleos de atores sociais do grupo citado, o artigo busca apresentar como estes elementos, componentes das representações e da identidade social do mesmo grupo, encontram-se enredados e emaranhados entre si; com as demais perspectivas culturais da vida social do bairro; e com outros grupos sociais contrastantes, denotando a flexibilidade e dinamicidade de suas fronteiras culturais, o que gera uma questão, à qual proporemos respostas: como preservar essa identidade social e seu respectivo capital cultural, em meio a uma modernidade e contemporaneidade vorazes, sem fechá-la em si mesma e, ao mesmo tempo, sem entregá-la a um universalismo que a dilua?
Palavras-chave: etnografia, pesca, identidade social, contrastividade, tradições, diversidade cultural.

Introdução

Debater a diversidade cultural, a multiplicidade de identidades sociais e as cores da história, nos dias atuais, é tarefa das mais penosas, ainda que prazerosa. Pretendo, portanto, iniciar este momento solicitando a ajuda de dois grandes nomes nesta discussão.
O primeiro deles é Claude Lévi-Strauss, que nos deixou há poucos dias. Quero recordar sua definição das culturas como vagões de trens, que seguem seus trilhos e, às vezes, vêem outros vagões, que correm em paralelo, seja em direção coincidente ou contrária, com mais ou menos velocidade, o que faz com que vejamos outros vagões culturais como vultos ou, em outras situações, como figuras bem claras (Lévi-Strauss, 1985). Para Lévi-Strauss, deve haver entre as diversas culturas uma incomunicabilidade relativa, um fechamento que, porém, permita certas aberturas, uma imperméabilité, ou seja, o entendimento de que há uma tendência natural das culturas manterem assimetrias e lacunas entre si, a fim de garantirem a si mesmas suas identidades.
O segundo personagem ao qual peço auxílio é Clifford Geertz. É ele quem afirma que a grande questão hoje já não é tanto a diversidade cultural entre as sociedades, mas dentro das sociedades (Geertz, 2001). O autor nos faz pensar que as cores da nossa história são muito mais variadas do que imaginamos. O que vemos em nossas cidades é um turbilhão de mudanças que, segundo Geertz, define a própria história, “de qualquer povo em separado, de todos os povos em conjunto (...) e de cada pessoa tomada individualmente” (Geertz, 2001, p.76).
Feitas essas solicitações de auxílio aos dois mestres, quero que suas duas ajudas, seus dois conceitos que agora apresentamos, nos iluminem ao longo de nosso debate, porque serão extremamente úteis na conclusão desta discussão.
I . Pesquisa e tropeços históricos
Minha pesquisa, ainda em fase de produção, é etnográfica, ou seja, prende-se a um estudo de campo, fundado na observação participante, que busca compreender o ponto de vista de um grupo social sobre si mesmo e sobre a cidade que o cerca, perseguindo a apreensão da identidade social, cultural, códigos e atributos, deste grupo, no caso, os pescadores artesanais do bairro da Gamboa, na cidade de Cabo Frio, Estado do Rio de Janeiro.
O objetivo inicial do trabalho era apenas a gravação de um curta-documentário, que apresentasse a realidade dos pescadores artesanais locais. Concluído, o documentário tornou-se fonte de pesquisa, somado a outros relatos colhidos e não incluídos na produção, além de fontes bibliográficas e audiovisuais (supondo que saibamos o que seja algo audiovisual).
Segundo Malinowiski, a etnografia tem o dever de prender-se mais ao comportamento e à memória do que ao documento, a fim de captar o caleidoscópio do grupo social (Malinowiski, 1976). A discussão acerca da pesquisa etnográfica pode nos levar a outro debate interessante, acerca das fontes históricas e sua valoração ao longo da historiografia: mais do que debater o que é pesquisa documental, cabe debater o que são documentos. Mas não é isso que queremos aqui tratar. O que vale por hora é transmitir como os indivíduos da sociedade investigada, como diz Gilberto Velho, constroem e definem sua realidade, sua própria história (Velho, 1980). Nesse sentido, a pesquisa etnográfica mais tem a ver com a interpretação de interpretações, como afirma Geertz, ou seja, com a idéia de, a partir dos dados colhidos naturalmente do grupo social, interpretar e buscar as raízes das representações do mesmo sobre a sua própria história.
O título do trabalho, Sociedade de Rede, parafraseia de uma das principais obras etnográficas: Sociedade de Esquina, de William Foote-White. A hipótese levantada, que desejo defender ao final da pesquisa, é que a atividade artesanal pesqueira na Gamboa é um Fato Social Total, conceito de Marcel Mauss que, segundo a interpretação de Holier, indica um Fato Social que exprime, em seu próprio nível, a totalidade do grupo do qual ele faz parte" (Holier, 1972). Ou seja: mais que uma atividade econômica, a pesca no bairro da Gamboa entrecorta as relações sociais existentes no bairro, influenciando os códigos, símbolos, hábitos, costumes, festejos, e relações com a cidade. Cabe lembrar aos caros alunos de história (entre os quais me incluo), que o próprio Mauss reconhece que "atrás de todo fato social existe história" (Mauss, 1950). Por ora, na caminhada em busca da comprovação desta hipótese, tenho encontrado os elementos que constituem a identidade social do grupo como emaranhados, entrelaçados entre si, entrecortados e com suas fronteiras sociais dinâmicas e flexíveis, mostrando que a constituição da identidade social e cultural de um grupo não é estanque, dotada de limites definidos e coesos, mas sim uma colagem cultural de espaços mal-definidos, como diria Geertz (Geertz, 2001), ou ainda, um emaranhado de nós, como as redes dos pescadores da Gamboa.
Muitos são os elementos que constituem a identidade social e cultural de um grupo. Dentre eles destacamos quatro que aqui desejamos apresentar: 1) objetos e símbolos; 2) relações de contrastividade com outros grupos; 3) atores sociais, núcleos de atores e suas concepções de tempo; 4) manifestações religiosas e tradições.
Minha primeira tentativa na pesquisa foi conectar a história do bairro à atividade artesanal da pesca. Para isso, entendi que deveria começar meu estudo pela pré-história. Acreditando firmemente em Bachelard, segundo o qual o fato científico é construído, (in Bourdieu, 2002) decidi buscar dados que correspondessem e confirmassem minhas expectativas pré-determinadas. De fato, pelos estudos da arqueóloga Lina Maria Kneipp e após breve conversa com o Doutor Alfredo José Altamirano, que me trouxe dados da também arqueóloga Maria Beltrão, concluí que a região que hoje constitui o bairro da Gamboa é cercada por sítios arqueológicos referentes aos índios tupinambás: os sambaquis do Morro da Guia, da Praia do Forte e do Peró, além do Sambaqui da Estação, atrás do Morro do Telégrafo (Beltrão, 1978). Os estudos de Lina Maria Kneipp mostram que, há cerca de 2000 anos antes de Cristo, os sambaquis da região do Cabo Frio apresentavam suas populações num crescimento evolutivo da atividade pesqueira. Com o passar dos anos, os Tupinambás passaram da coleta de moluscos e das pescarias, enquanto suplementação alimentar, para uma rotina onde a pesca, ainda que de pequenos peixes, era cada vez mais significativa como componente alimentar essencial. A pesca enquanto código cultural fazia-se presente ainda com os adornos tribais das primeiras ocupações, constituídos todos por vértebras de peixes polidas. Nesse sentido, ainda que eu tenha encontrado uma íntima e crescente relação dos tupinambás com a pesca, não pude, evidentemente, estabelecer a conexão que desejava entre os mesmos e a região geográfica exata da Gamboa: os sambaquis de Cabo Frio cercavam a Gamboa, mas não há indícios de ocupação indígena no exato local onde hoje existe o bairro (INEPAC, 2009; Kneip, 1977).
A conclusão é óbvia: eu não poderia falar dos índios da Gamboa, porque, durante muitos anos, a Gamboa simplesmente não existiu. Meu erro, portanto, talvez tenha sido renegar o valor de informações palpáveis oriundas de um presente próximo, louvando, ao contrário, as tradicionais tentativas de ajustar os dados nas camisas-de-força que muitas vezes criamos academicamente, no afã de estabelecermos espetaculares relações históricas. Como meu interesse era alcançar algumas informações da história da localidade para introduzir e contextualizar minha pesquisa etnográfica, decidi, portanto, inverter o caminho e partir do presente para o passado. Dessa forma, decidi buscar fontes históricas fundadas no que Febvre chama de “ampliação do arquivo do historiador”, ou seja, a partir do entendimento de que todo documento que é vestígio do passado do homem é válido para a pesquisa histórica, a fim de preencher os silêncios da história, ainda que tal fonte seja um poema, um quadro, um drama (Febvre, 1965). Ora fotos, entrevistas, conversas e anotações feitas pelos próprios entrevistados parecem, por conseguinte, ter encaixe nessa modalidade de fonte aqui proposta.
Utilizei como uma de minhas primeiras fontes históricas, dentro dessa concepção, uma foto datada de 1915, oriunda dos arquivos do fotógrafo cabofriense Wolney Teixeira. Nela, vemos a Gamboa como uma fina faixa de areia praticamente desabitada, que separava a encosta do Morro do Telégrafo do Canal Itajurú, localizada logo após a então denominada Ponte Miguel de Carvalho, na direção de Búzios. O dado remete aos relatos de pescadores antigos do bairro, ao afirmarem que, no ano de 1950, as águas ainda batiam no que hoje é a calçada da direita da Rua José Rodrigues Povoas, ou seja, a encosta do Morro do Telégrafo. De fato, na década de 70 a Gamboa passa por um forte processo de aterramento, com o Projeto Marinas do Canal, concluído na década de 80, projeto este composto por aterros entrecortados por canais artificiais formando três ilhas de uso residencial (Alves,2009), “fabricando” boa parte do bairro que hoje conta com uma extensão de 1,7 km e cerca de 2199 moradores de acordo com o Censo do IBGE de 2000.
O próprio nome do bairro já denota a relação da cultura pesqueira. As gamboas eram espécies de armadilhas elaboradas pelos índios Tupinambás, que consistiam em escavar espécies de valas nos leitos de rios para que, por ali, com as cheias das marés, os peixes fossem atraídos a se deslocarem, facilitando sua captura pelos indígenas. Alves confirma a versão ao afirmar que a palavra significa “Trecho de rio ou de mar que só tem água na maré alta.” (Alves, 2009,71). O traçado da área, de fato, remete a essa estrutura: para a autora, o bairro constituía-se, à época do Projeto Marinas do Canal, de área suscetível às variações de maré, sendo, por isso, pouco valorizada.

II . Objetos simbólicos

Passemos agora para outra fase da nossa pesquisa, onde analisaremos as relações de alguns objetos simbólicos, para o bairro e para os pescadores, com a identidade social do grupo. Antes de falar do primeiro dos quatro objetos simbólicos que guiam minhas reflexões, pretendo esclarecer, primeiramente, o que é, exatamente, um objeto enquanto símbolo significativo dentro de um grupo social. Reginaldo Gonçalves entende que os objetos trazem uma circularidade cultural que está diretamente relacionada ao processo de pertencimento cultural e, portanto, de identidade (Gonçalves, 1996, 2003 a, 2003b). Bachelard, por sua vez, aponta para o fato de que a memória, e seu caráter elástico e fabulatório, impregna as coisas e está prenhe de simbolismos, quando articulada a uma fenomenologia do objeto imerso no vivido (Bachelard, 1988). Também os lugares, como nos ensina Michel de Certeau (Certeau, 2004), sendo transfigurados em espaços sociais, coadunam-se com o tempo que costura e recostura as imagens mentais de acordo com as categorias nativas. Nesse sentido, podemos observar como objetos e lugares tornam-se símbolos essenciais para a constituição de uma identidade cultural.
Falando do nosso primeiro objeto enredado, citemos a ponte sobre o Canal Itajurú, que liga o bairro da Gamboa ao centro da cidade de Cabo Frio. Cabe observar que, no jogo entre construção e representação apontado por Prado (Prado, 1995), a ponte pode ter sido construída como um símbolo de ligação entre dois pontos da cidade separados pelo referido canal. O fato é que, a partir dos relatos de moradores da Gamboa e também do centro da cidade, fica claro que, no imaginário de boa parte da população, a ponte – seja a antiga ponte de ferro Miguel de Carvalho, construída em 1898, a Ponte de concreto Feliciano Sodré de 1926 ou a Ponte Márcio Corrêa de 2000 - tornou-se símbolo que mais acentua a separação e segregação, entre o que se pode chamar de “duas partes da cidade”.
Carlos Lessa trabalha a tese de existência de duas cidades do Rio de Janeiro dentro de uma só (Lessa, 2001), o Rio de Janeiro real e o que chama de Rio Kitsch (termo que significa “maquiado”, “aparente”). Parece que essa representação não é muito diferente em Cabo Frio. Certo historiador local, por exemplo, ao tentar elaborar um dicionário geográfico de Cabo Frio, define a Gamboa como “lugar em frente da cidade” (Beranger, 2003). Ora, se é em frente da cidade, é outra coisa, diferente dela. Está fora - não é cidade. Incorpora-se no imaginário da população regional a idéia de que há uma outra Cabo Frio, socialmente separada, no “além-ponte”. Saindo da análise dos discursos textuais para os verbais, cabe lembrar ainda que, nas últimas campanhas eleitorais, muitos candidatos falaram sobre as condições e as soluções para a cidade “do outro lado da ponte”, num discurso de integração entre os dois lados da cidade, o que, obviamente, demonstra uma representação de cidade partida, mas não repartida.
A divisão da cidade pela ponte pode sim denotar a impressão de Lessa sobre o Rio de Janeiro: o além-ponte seria a Cabo Frio real, dotada de mazelas sociais, ao passo que a parte da cidade antes da ponte, caracterizada pelo centro, seria a Cabo Frio ideal, ou Kitsch, composta da região turística, o balneário de sonhos e glamour. Alves, porém, nos atenta que a própria região da Gamboa passou por um processo de maquiagem, ou seja: o desejo da cidade ideal maquiou parte do bairro. A autora cita que, em meados do século XX, antes do já citado aterramento do Projeto Marinas do Canal (concluído na década de 80), outro aterramento fora elaborado, tendo como objetivo a instalação do Clube Costa Azul, frequentado pela elite da cidade (Alves, 2009). Para a autora, os pescadores, com suas dificuldades econômicas e sociais, ficaram presos a uma faixa de terra que denomina cidade confinada, entre duas ocupações de alto padrão. A maquiagem da Cabo Frio Kitsch, portanto, parece se estender até parte do além-ponte, criando na Gamboa uma estrutura social esquizofrênica, ao mesclar glamour e pobreza num mesmo espaço. A maquiagem da cidade, portanto, parece possuir um borrão no sopé do Morro do Telégrafo, com a ocupação dos pescadores, maquiagem esta que terminaria atrás do mesmo morro, caracterizando o que Alves chama de cidade escondida, a partir do bairro do Jacaré, com todos os problemas urbanos que caracterizam a área a partir dali.
A autora cita ainda a justificativa utilizada para o tombamento do Morro do Telégrafo, por ser moldura cênica da cidade (Alves, 2009). É o morro que faz a separação entre a cidade maquiada e a cidade real, maquiagem essa que, como vimos, não passou pelos rostos e vidas dos pescadores da Gamboa, constituindo um borrão social. De fato, como nas artes cênicas, o Morro do Telégrafo seria o limite geográfico entre o real e o imaginário, entre a cidade que temos e a cidade que queremos que os outros vejam: ele é a cortina que fecha o espetáculo, e acaba escondendo, quem sabe, a desorganização e o burburinho da coxia. Se a ponte divide a cidade, o Morro do Telégrafo tenta mostrar que a cidade não é tão dividida assim.
Nosso segundo objeto simbólico enredado na identidade cultural do pescador da Gamboa é a própria rede de pesca. Ainda que, há alguns anos, a compra das redes de pesca em comércio formal esteja se estabelecendo, as gerações mais antigas de moradores ainda mantêm o hábito da confecção artesanal nas redes. Esse tipo de confecção obedece um ritual próprio: deve ser realizada na parte de fora da casa, de preferência na calçada, numa atitude de comportamento público. Uma infinidade de nós é aplicada a cada fio de náilon, de maneira completamente artesanal, o que pode fazer durar semanas, ou até meses, a confecção de uma única rede, dependendo do tamanho e da disponibilidade do artesão. Quanto ao destino do produto, cabe lembrar que Nicholas Thomas divide as relações de troca entre relações de presente e relações de mercadorias, estando o destino das redes artesanais muito mais próximas daquele tipo de relação: elas, em geral, não devem ser vendidas, mas sim doadas ao pescador que dela precisar (Thomas, 1991), imprimindo sentido comunitário ao objeto.
A relação dos pescadores da Gamboa com seus barcos também apresenta reflexões sociais interessantíssimas. Esse tem sido o meu atual tema específico de estudo, ainda em início, portanto, com poucos dados a apresentar. Entretanto, não poderia deixar de citar um ator social que representa bem a relação que desejo trabalhar: Zé Maimbá é filho de Vivino, considerado pelos membros do grupo como o “primeiro pescador da Gamboa”, denominação essa que, por si só, já traz reflexões interessantes que mais à frente debateremos. Zé Maimbá não foi nem é exatamente o que se pode chamar de pescador artesanal de ofício, aliás, foi a primeira coisa que disse durante nossa entrevistas, fazendo questão de se excluir da categoria de “pescador”, o que começou a chamar minha atenção para o fato que os próprios membros do grupo social se incluem e excluem de determinados núcleos e categorias.
Apesar de não ser pescador artesanal de ofício, Zé Maimbá possui notável prestígio na comunidade pesqueira por três motivos fundamentais: em primeiro lugar, por motivos hereditários – é filho de Vivino, que como já dissemos, é considerado o primeiro pescador da Gamboa. Isso nos remete aos estudos de Prado sobre o que a Antropologia Urbana chama de “cidades pequenas”, onde cada pessoa é reconhecida por uma relação holística com um todo, ou seja: para se identificar uma pessoa, usa-se alguma referência fora dela, denotando que, em contextos deste tipo, ninguém existe como indivíduo, isolado. Por isso, seja na “cidade pequena” ou no que podemos chamar de “comunidade pequena”, o “fulano” nunca é “fulano” apenas – ele é “fulano”, filho de “Beltrano”, ou ainda, o “Fulano” do Bar – sua existência é sempre contextualizada. Assim ocorre com Zé Maimbá neste primeiro ponto de justificativa da sua importância na estratificação social da Gamboa que queremos denotar. Em segundo lugar, Zé é o guardião social das histórias do passado do grupo, assim como outros atores, dos quais mais à frente falaremos. Em terceiro lugar, por ser marceneiro de profissão, Zé Maimbá elabora réplicas perfeitas de barcos antigos da Gamboa, guardando dentro deles recortes de jornais e informações específicas sobre a maioria das embarcações em miniatura que constrói.
Zé Maimbá aparece como o ponto de referência físico, visual, imagético, de uma comunidade que tenta manter suas tradições pela verbalidade. A figura do barco condensa detalhes do passado da pesca na Gamboa, mantém o registro da história do bairro e da pesca local. O conhecido cuidado extremado que Zé Maimbá possui por suas réplicas, entendida pelos moradores como “ciúme dos barcos”, só alarga essa representação do guardião da “história da pesca do bairro”, incrementando sua figura protetora do passado. Ao notar que este senhor transforma as réplicas em pequenas enciclopédias da pesca local, não só por reproduzir com esmero os detalhes das embarcações, mas também por relacioná-las com fatos históricos relevantes para a comunidade, ao guardar, dentro das mesmas, recortes de jornais e outros documentos que ligam-se ao barco ali reproduzido, somos forçados a perceber a quase desnecessidade de nos remetermos às teorias sobre a importância dos objetos simbólicos para um grupo social, já que este tipo de produção reflete perfeitamente a amplitude que um objeto pode possuir em relação à história e ao sentimento coletivo de um grupo.
O quarto e último símbolo que desejo tratar nesta exposição é, na verdade, um lugar: a chamada Rampa dos Pescadores. Ela integra o prédio da Associação dos Pescadores e Amigos da Gamboa – APEAG e serve como local de estaleiro de barcos locais em regime comunitário, onde o pescador do bairro paga preço simbólico pela utilização do local e do serviço, prestado voluntariamente. A renda da “taxa de estaleiro” ou da “diária” é revertida para o pagamento de despesas de funcionamento do prédio da Associação (luz, água, etc.). A Rampa teve sua construção concluída em 2007, ainda que o projeto elaborado pelos pescadores seja datado de 2003.
Há dois fatores interessantes para conversarmos sobre a Rampa. O primeiro é o simbolismo de um dos objetos componente deste local, a placa de bronze (que talvez não seja exatamente de bronze, mas sim “bronzeada”, não pelo sol da Gamboa, mas pela contenção de gastos do poder público) cunhada pela Prefeitura quando da inauguração do Projeto (custeado pelo Poder Público Municipal), contendo os nomes dos principais pescadores da história do bairro, já falecidos. Uma das cenas do documentário que produzimos faz uma tomada de aproximação da placa, possibilitando que os nomes sejam lidos pelo espectador. Na apresentação do filme aos moradores do bairro, durante o II Festival de Culinária da Pesca da Gamboa, foi fácil observar comportamentos emotivos de duas espécies: de um lado, a emoção dos parentes dos pescadores falecidos citados na placa, manifestada com lágrimas; de outro, a emoção dos companheiros ou contemporâneos dos mesmos pescadores, manifestada com sorrisos, olhos no máximo marejados e comentários saudosos. As reações nos remetem às teorias da antropologia social inglesa, criticadas por Edmund Leach, que dividem relações sociais familiares como de filiação ou de afinidade (Leach, 1974). Claro que a postura de parentes aproxima-se mais das relações de filiação, e a dos companheiros e contemporâneos mais das relações de afinidade. Isso, porém, não deve ser encarado como universal, onde concordamos com as críticas de Leach – ali mesmo, na apresentação do documentário (que foi realizada na Rampa dos Pescadores), não tenho dúvidas que tivemos parentes com emoções de afinidade e companheiros contemporâneos com emoções de filiação, além de outros parentes e companheiros que talvez nenhuma emoção tiveram, corroborando nossa impressão de que as relações sociais dentro do grupo não são fixas e definidas, mas móveis, dinâmicas e flexíveis, como nós de redes artesanais, às vezes confusos. Concordando com Leach em suas reflexões de 1961, entendo que hoje “ainda é possível generalizar especulações generativas nos fatos de Malinowiski”, mas isso não significa que seu modelo seja plenamente observável na realidade: o real é muito mais entrecortado por uma diversidade de comportamentos que não podemos sempre medir, dividir ou categorizar. A realidade é composta não só de objetos emaranhados, como diria Thomas (Thomas, 1991), mas de objetos, emoções e comportamentos emaranhados, ou, numa tradução que atenda mais às nossas reflexões pesqueiras, objetos, emoções e comportamentos enredados.
Cabe destacar aqui ainda que a observação dos comportamentos e emoções das pessoas ao se depararem com suas próprias imagens numa tela ou com imagens de objetos significativos para sua cultura local é também objeto de estudo etnográfico, como argumenta o estudo da professora Clarice Peixoto (Peixoto, 1998).
Outra anotação essencial acerca da placa com nomes dos pescadores falecidos da Gamboa é a noção já citada de heróis fundadores, os “Rômulos modernos”, segundo Edgard Morin (Morin, 1981). De acordo com Vaz, as reflexões sobre a representação do herói fundador modificam-se ao longo da história, e ligam-se à noção de fundação de formas diferentes:

A visão grega arcaica do homem era profundamente marcada pela idéia da areté, que pode ser traduzida como excelência (...) mais tarde, a areté se torna civilizadora, tendo como herói o fundador da cidade (hêros klistês) (...). A partir da organização da polis, o conceito de areté passa a se vincular intimamente ao conceito de justiça (diké), e o herói fundador da cidade passa a ser o legislador (nomotéthes). (Vaz, 1991, p.29)

Não há dúvida, portanto, que Vivino (representado como “o primeiro”) e seus companheiros, enquanto “os primeiros pescadores” da Gamboa têm seus nomes gravados na Placa de bronze (ou bronzeada) como heróis fundadores, não da cidade, mas da cultura da pesca na localidade. Nossa relação não é absurda: se a cidade é o locus da manifestação de muitas identidades, segundo Prado (Prado 1995), e a nossa meta principal é delimitar as fronteiras e códigos da identidade social e cultural dos pescadores da Gamboa, podemos entender que o herói fundador, enquanto mito de origem de um locus de várias identidades, pode ser visualizado em “escala reduzida” na origem de uma das identidades componentes da cidade, o que nos faz concluir que a representação de heróis fundadores pode perfeitamente ser denotada a Vivino e seus companheiros. A noção de visualizar um fenômenos social em “escala reduzida”, por sua vez, não é absurda – Leach a defende, ao também defender uma noção topográfica de pesquisa antropológica (Leach, 1974)
O segundo fator interessante a refletirmos acerca da Rampa é o nosso entendimento em poder considerá-la uma região moral, de acordo com os estudos de Robert Park. De acordo com o sociólogo americano, a região moral seria “um ponto de encontro, um local de reunião” onde “os impulsos, as paixões e os idéias vagos e reprimidos se emancipam da ordem moral dominante”, já que, para ele, “a população tende a se segregar não apenas de acordo com seus interesses, mas de agosto com seus gostos e temperamentos” (Park, 1979, pp. 64,65).
Parece estranho, primeiramente, citarmos de maneira positiva o termo “segregação”, que, ao falarmos da simbologia da ponte sobre a Gamboa, taxamos como negativo. Nesse caso, é preciso salientar que a noção de Park sobre “segregação” tem outro significado: é ela que “garante um suporte moral para os traços que têm em comum, diferindo dos outros grupos sociais (...)” (Park, 1979, p.66). A “segregação” parkiana se dá como “o outro lado da moeda” da “agregação”: para que indivíduos com interesses comuns se agreguem em torno de determinados gostos e paixões, é preciso, como num efeito colateral óbvio, que os mesmos se segreguem em relação a outros grupos de gostos e paixões diversas.
Por muitas vezes percebi a presença de pescadores durante o dia na rampa para tratar de assuntos totalmente adversos às questões associativas. Vi a Rampa servir pra conversas religiosas, consultas acerca das condições do mar, conversas em geral sobre o bairro, todas ao menos tangendo a realidade da cultura pesqueira, onde me parecia clara a simbologia da Rampa como ponto de encontro de gostos e identidades sociais comuns, muito mais do que um palco de discursos e ações transformadoras da sociedade, ou de enfrentamentos diretos com o aparelho do Estado, como é a visão de Castells acerca das associações e movimentos urbanos contemporâneos (Castells, 1980). É evidente que a APEAG tem suas causas e lutas políticas, tanto no campo da legalidade estrita quanto da militância e articulação pela obtenção e garantia de direitos da classe. O fato que desejo salientar aqui, porém, é que a APEAG, e em especial sua sede, composta pela Rampa dos Pescadores, é bem mais que isso, reunindo também causas afetivas, emocionais, psicológicas e sociais que levam um indivíduo membro da cultura pesqueira do bairro a se associar ou, simplesmente, fazer daquele local um ponto de encontro social, uma região moral.

III . Contrastividades enredadas

O termo “segregação”, portanto, precisa ser tratado com muito carinho acadêmico. Assim se dá também com o termo “constrastividade”, que segundo Prado, é um dos eixos de sustentação da própria identidade social e cultural de um grupo (Prado, 1995). De fato, a contrastividade entra no fundamento das nossas discussões iniciais acerca de uma impermeabilité defendida por Lévi-Strauss, que me leve a ser eu e não outro (Lévi-Strauss, 1985).
Ao falar da impermeabilité, Lévi-Strauss entende que, para que ela aconteça, uma certa dose de etnocentrismo é necessária, já que este não é ruim em si, e até necessário, desde que haja um certo controle. Este “controle”, por sua vez, consistiria em não reprimir, nem destruir os valores rejeitados, ou aqueles que os possuem (Lévi-Strauss, 1985). Lévi-Strauss, portanto, parece propor uma contrastividade que se reconheça em si mesma, ou seja, que não se entregue a um universalismo cultural piegas, mas que também, por outro lado, não gere rivalidade entre os grupos pertencentes às relações de contraste, mas, simplesmente, que seja entendida como necessária para delimitar fronteiras sociais da própria identidade cultural.
O que observei, porém, entre os pescadores artesanais da Gamboa, é que essas fronteiras de contrastividade que delimitam as identidades de grupos sociais diferentes não são tão estabelecidas. Citarei aqui dois casos: 1) a relação entre o pescador e o “profissional de terra”; 2) a relação entre o pescador que defende a APEAG e a Colônia de Pescadores.
Quanto ao primeiro exemplo, a contrastividade entre o pescador e o “profissional de terra” permanece como princípio básico de organização social “inconsciente”, como diria Malinowiski, entre os pescadores (Malinowiski, 1976). Todos entendem que, de fato, “ser pescador” envolve uma série de condutas, rotinas, códigos e grupos de relacionamentos pessoais diferentes, por exemplo, dos “profissionais de terra” que vendem roupas de praia no bairro (a grande atividade econômica local que nasce na década de 60 e explode na de 80) ou que possuem outras profissões, como o carpinteiro, o pedreiro, etc. Essas relações, entretanto, são emaranhadas ao extremo, e embora essa contrastividade de mantenha mentalmente, a prática da relação social as faz enredadas umas nas outras. A realidade atual da pesca artesanal faz com que muitos pescadores – a maioria hoje – mescle sua rotina entre profissões de terra e a pesca, colocando uma ou outra como secundária. Um dos entrevistados do nosso documentário iniciou parte de seu discurso afirmando que sua “profissão mesmo” era “em terra”. O próprio Zé Maimbá fez questão de abrir a entrevista afirmando não ser pescador, mas sim carpinteiro. Uma das cenas do documentário mostra um pescador com seu objeto de trabalho – um facão, já que passa a maior parte do tempo em terra a capinar como “biscate”. Há uma necessidade social em se encaixar em um dos dois pólos categoriais, mas o que vemos na prática das relações sociais na Gamboa é a mistura dessas categorias, ou seja, a relação de contrastividade, que compõe um dos fatores de delimitação das fronteiras de uma identidade social, nesse caso, flexibiliza sua função, ao não definir tão bem “quem é quem” nesse jogo de identidades sociais.
A essa constatação chamaremos “contrastividade enredada”, devido ao fato de observarmos grupos contrastantes emaranhados uns nos outros, seguindo novamente a terminologia de Nicholas Thomas em tradução livres dos seus entangled objects (Thomas, 1991).
Um segundo exemplo dessa noção que aqui queremos defender é a relação de contrastividade social entre a Colônia de Pescadores e a Associação de Pescadores e Amigos da Gamboa.
As Colônias de Pescadores em todo o Brasil possuem raio de abrangência muito maior, por serem equiparadas aos sindicatos de trabalhadores rurais pelo artigo 8º da Constituição. A APEAG, ao contrário, é local, do bairro da Gamboa. A relação de contrastividade se dá pelo fato de que os entrevistados acerca da fundação da APEAG foram unânimes em declarar que seu surgimento veio da inércia ou da morosidade da Colônia em satisfazer direitos e desejos dos pescadores da localidade. Nesse sentido, podemos observar uma relação de contrastividade ao podermos afirmar que o pescador que defende a criação e existência da APEAG, quase necessariamente, não é um defensor da Colônia, mas sim um crítico de suas ações e comportamentos.
Essa contrastividade, porém, possui relações enredadas de maneira pitoresca. A lei federal 11699/08 define que apenas as Colônias de Pescadores são consideradas entidades de classe dos pescadores artesanais, aliadas às federações estaduais e à confederação nacional. Nesse sentido, é compulsório às associações de pescadores e aos pescadores artesanais que sejam filiados à Colônia para, por exemplo, receberem o seguro-desemprego durante o defeso, comumente chamado entre os pescadores apenas de “o defeso”. Ou seja: o membro da APEAG, necessariamente, é membro da entidade que o revoltou (segundo termo usado por um dos entrevistados) com sua atuação e que o levou a fundar uma entidade “de oposição”. Nesse sentido, ainda que no campo das divergências políticas e sociais haja uma relação de contrastividade fundadora (já que a inércia da Colônia e a discordância para com sua atuação é motivo de fundação da APEAG), no campo legal e jurídico, há uma relação de pertença. Cabe lembrar que tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 3271/08, que permite aos pescadores não filiados a Colônias, recebam o “defeso” ao apresentarem certidões comprobatórias de outras entidades representativas, como as associações. O Projeto, entretanto, encontra-se estacionado desde 29 de setembro de 2009 na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados.
Ainda nesse segundo ponto de “contrastividade enredada”, cabe relatar um fato pitoresco que representa muito bem esse emaranhado de relações de contrastividade e pertença: em determinado momento no campo, solicitei a um de meus “indivíduos-chave” [1] que me fornecesse uma lista de gírias e palavras utilizadas pelos pescadores em suas atividades. Mais importante do que destacarmos termos como “dar varada” (não pescar nada), “enxar” (passar mal no mar), “pururuca” (pescador que não acerta o alvo) e nomes pitorescos de objetos de pesca como “bate-puxa”, “vareginho” e “zangareijo”, o interessante foi notar que a lista foi transcrita no verso de uma planilha mensal de custos e benefícios da APEAG. Nesse sentido, obtive duas fontes etnográficas ao solicitar apenas uma, sendo a segunda (a planilha de custos) uma “fonte-sem-querer”, de fato, como um pingo de chuva que cai do céu sem que o queiramos, como diz Da Mata (Da Mata, 1978). Pude analisar diferenças entre subidas de embarcação e diárias, gastos e outros. Pude medir (ou ao menos supor) o nível de voluntarismo dos membros, a partir da relação custo-benefício gerada, bem como a quantidade de pescadores que confiavam seus barcos ao serviço da Associação.
Mas o mais interessante ainda estava por vir. O cabeçalho da planilha que chegara às minhas mãos levava o título de “Colônia dos Pescadores da Gamboa”, ao invés de “Associação de Pescadores e Amigos da Gamboa”. Não sei se o fato se deu por erro de digitação. O fato é que o título da planilha da APEAG empunhava caprichosamente o nome de outro grupo social, com o qual a Associação mantém relação de grande contrastividade e que foi o motivo negativo, por assim dizer, de seu surgimento, como já dissemos – a APEAG surge como uma negação da Colônia.
São as ironias e surpresas da pesquisa de campo etnográfica, num ambiente onde as relações de contrastividade, como defendemos, são enredadas, e as diferenças, oposições e fronteiras entre grupos sociais não são tão definidas assim, havendo mistura e confusão natural de sentimentos e termos. Aqui lembramos a análise de Nicholas Thomas acerca da natureza mercadológica, por exemplo, de uma camisa e suas fases: na loja, encontra-se sob a fase de ser mercadoria; vendida, encontra-se sob a fase de presente a ser dado a alguém (Thomas, 1991). Ao entender, assim, que a divisão que Gregory opera entre mercadorias e presentes é móvel e dinâmica, já que o mesmo objeto pode assumir uma das duas categorias como “fases” em distintos momentos da vida social, Thomas define o que chama de “promiscuidade dos objetos”. Aqui, entendo eu, também determinadas relações entre grupos sociais podem ser promíscuas, no (bom) sentido de ora serem de contraste, ora serem de não-contraste, dependendo da fase em que os grupos se encontram e se relacionam na vida social.
Há, em meio a esse universo de “contrastividades enredadas”, outras contrastividades onde as relações de oposição são bem fixas e definidas. É o caso da relação de contrastividade entre os pescadores artesanais da Gamboa e os pescadores de “pau-brocos”, os grandes barcos de pesca, os atuneiros, ou ainda chamados por alguns pescadores de “atunzeiros”. Os “pau-brocos” encontram-se em oposição aos pequenos barcos de pesca artesanal, e a ação dessas embarcações tem sido apontada como um dos principais motivos de crise da pesca artesanal local. A argumentação, que pude colher na grande maioria das entrevistas sobre o tema, é bastante simples: com as grandes redes de cerca de mil metros de comprimento e sessenta de profundidade sendo utilizadas pelos grandes barcos “para fora” da costa, ou seja, em direção ao alto mar, os peixes não chegam à costa, onde a maioria dos barcos de pesca artesanal atua. A solução prática para a situação, como defende a APEAG, é a criação de um Projeto de Gerenciamento Costeiro, uma espécie de zoneamento das áreas de pesca. Deixando a discussão de políticas públicas à parte, pretendo demonstrar como a representação comum dos pescadores artesanais de ofício da Gamboa em relação aos grandes barcos é a de que eles, basicamente, são os maiores culpados pela queda de sua atividade. Isso gera justamente a relação de contrastividade que delimita uma fronteira: uma coisa é ser pescador artesanal; outra, oposta, é trabalhar para grandes empresas de pescado. O fato interessante que pude presenciar é que uma das empresas que gerencia grandes barcos de pesca doou boa quantidade de pescado para o Festival de Culinária da Pesca, sendo, a todo momento, anunciada publicamente em agradecimento ao longo do festival que buscava a valorização do pescador artesanal. Pude observar com clareza reações bem tímidas de descontentamento de alguns presentes. Não desejo apontar, absolutamente, nenhuma incoerência ou contradição, nem da parte da APEAG, nem da organização do evento, nem da empresa de grandes barcos de pesca, nem supor a criação de um ciclo de dependência ou de clientelismo por parte desta. Minha função etnográfica aqui prende-se a registrar e refletir as reações e representações dos membros desta “sociedade de rede” acerca de seu próprio mundo apenas.

IV . Atores, núcleos e tempos

Algo essencial ao falarmos da identidade social e cultural de um grupo é definirmos as formas de comportamento que os indivíduos participantes dele assumem. O que comumente a sociologia conceituou como “ator social” é definido por Park da seguinte maneira:

(...) todo homem está sempre e em todo lugar, mais ou menos conscientemente, representando um papel... é nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros; é nesses papéis que nos conhecemos a nós mesmos (...) a concepção que temos de nosso papel torna-se uma segunda natureza e parte integral de nossa personalidade. (in Goffman, 1983, p.26)

Ao aproveitar a definição de Park, gostaríamos de contribuir com o que aqui chamaremos de “núcleos de atuação”. Como numa trama, também nas relações sociais temos diferentes tipos de atores, que podem ser divididos em categorias diversas. Seria um ledo engano supor que o pescador artesanal de ofício constitui a única modalidade de atuação neste cenário social. Nossa análise, por outro lado, tende a considerar a pesca na Gamboa como um Fato Social Total, como acima apresentamos, o que conduz a uma articulação da cultura pesqueira com uma série de objetos, grupos, códigos, noções de tempo, espaços e costumes enredados. Nesse sentido, falar de sociedade de rede na Gamboa é falar de uma série de tipos de atuação em relação à pesca artesanal no bairro, e entender que a atuação nesta identidade abarca toda a personalidade cultural, toda a vida social da localidade.
A noção que aqui tentaremos estabelecer e chamar de núcleos de atuação, por sua vez, nos remetem aos estudos de categorização dentro dos grupos sociais. Segundo Gilberto Velho (Velho, 1973), os antropólogos têm se preocupado, desde pelo menos Durkheim e Mauss, com o estudo, organização e reflexão acerca dos sistemas de classificação dentro das sociedades. O estudo das categorias subentende que os grupos sociais não possuem uma homogeneidade nem uma heterogeneidade tamanha que os impeça de serem estratificados em unidades mínimas ideológicas, a partir de elementos comuns de suas próprias representações. Para Velho, essa divisão de um grupo social em categorias – e ele afirma isso ao estudar os moradores de Copacabana – tem relação com a posição dos membros das mesmas categorias na estratificação social do grupo, ou seja: tem relação com poder, status e ideologia. No caso da nossa pesquisa, decidimos apresentar as categorias criadas pelos próprios pescadores, a partir de uma adaptação do que Velho chama de “frase típica”, entendendo que é a partir de repetições de termos e concepções sobre um mesmo tema social que podemos de certa forma organizar um grupo em diversas categorias. Os pescadores da Gamboa, portanto, deram um passo além: eliminaram meu trabalho antropológico de “batizar” categorias e “organizar” frases típicas em blocos para “criar” categorias – eles mesmos me apresentaram as categorias dentro do grupo, seus por quês e suas funções e posições de estratificação social.
Nesse sentido, percebemos haver vários atores sociais dentro do grupo dos pescadores artesanais da Gamboa. Esses atores sociais, por sua vez, encontram-se localizados em seus próprios núcleos de atuação, suas próprias categorias. Se há uma divisão principal entre o que os pescadores chamam de “trabalhadores em terra” e “pescadores artesanais de ofício”. A própria categoria de “pescadores artesanais de ofício”, por sua vez, possui subcategorias de acordo com os instrumentos usados, como os “pescadores de linha” ou “pescadores de anzol” e “pescadores de rede”, isso sem falar dos inusitados “pescadores de pedra”: aqueles que dizem sair pra pescar, mas preferem se entregar aos prazeres do ócio com um bom descanso sobre as pedras da costa. Dentro da própria subcategoria dos “pescadores de rede”, por sua vez ainda, temos outras divisões, como a “rede de espera”, na qual o pescador artesanal deixa sua rede armada na costa, presa a um instrumento fixo na areia, e vai buscá-la dias depois para recolher os frutos da sua atividade. Se utilizarmos como parâmetro de subcategorização a área geográfica de atuação, teremos os “pescadores de mar” e os “pescadores de lagoa”, que dizem respeito à diferença entre a distância de entrada e locais de atividade dos pescadores na natureza.
Falamos apenas de duas categorias (“pescadores artesanais de ofício” e “trabalhadores em terra”) e a diversidade de subcategorias dentro de uma delas. Entretanto, o universo social da pesca na Gamboa envolve bem mais que essa divisão. Vimos anteriormente que os artesãos das redes também se constituem como outro núcleo desse grupo social. Por outro lado, as esposas dos pescadores também constituem categoria fundamental na atividade pesqueira, tanto no desenvolvimento da cultura culinária da pesca artesanal quanto na participação nas lendas e causos do grupo.
Um outro núcleo de atores socais/categoria importantíssima para o estudo deste grupo social, e que aqui desejo esmiuçar, é o de antigos moradores, os guardiães da memória da comunidade pesqueira. Sendo pescadores ou não, são eles que possuem na memória os dados e casos dos primórdios da população no bairro e se encontram no topo da estratificação social do grupo, o que não quer dizer que esta relação de valorização seja unânime, aliás, leve-se em conta que unanimidade e grupos sociais são palavras que se relacionam com exatidão em raríssimos casos.
Todas as histórias e estórias contadas por esse núcleo de atores sociais são relacionadas à atividade pesqueira artesanal da Gamboa e não há como separar a memória da pesca da memória do bairro. Já tendo apresentado Zé Maimbá e sua relação com a história local, parece faltar agora uma análise da inversão desses papéis: de que forma o bairro atua diante dos antigos moradores? Qual é o papel social exercido pelos outros pescadores, demais moradores da localidade e demais atores sociais daquela região em relação a estes atores, guardiães da memória pesqueira da Gamboa?
O apego do bairro a essas pessoas é demonstrado pelo receio da passagem do tempo e da morte. A grande maioria dos meus “informante privilegiados” me transmitiam a necessidade de entrevistar logo determinadas pessoas, pois estavam velhos, e poderia não haver tempo suficiente de colher suas informações. Ouvi muitas frases do tipo “olha, fulano já morreu”, como um aviso de que eu deveria agilizar meu trabalho, não por impaciência dos moradores ou devido aos prazos da pesquisa, mas sim por causa do temor de que a morte levasse aquelas testemunhas do passado da pesca artesanal. Essa reflexão, mais do que nos encaminhar a debates sobre representações acerca da morte, nos conduz a uma discussão muito mais apetitosa aos paladares da história: a reflexão sobre o tempo.
Escondido por detrás do medo da morte, creio eu, está o medo do tempo. O medo da morte, nesse caso, parece mera conseqüência do medo do tempo. Fosse o medo “puro” da morte o fundamento dessa representação, não seria ele imputado somente aos mais velhos, mas a todos os moradores, ou ainda, a uma outra categoria de moradores, como os doentes, por exemplo. Se essa representação de medo liga-se diretamente aos moradores mais antigos, fica claro que a ela subjaz o medo e a constatação do passar penoso do tempo. O mesmo tempo que fundamenta a importância desse núcleo de atores (pois é por serem guardiães do tempo e da memória que são importantes) é o tempo que os ameaça e ameaça a comunidade de perder tais figuras representativas.
Por outro lado, cabe ainda falar da concepção de tempo dos próprios atores do núcleo que denominamos de antigos moradores da Gamboa. Prado entende a existência do que chama de “tempo mítico” ao estudar os moradores de Cunha, no Estado de São Paulo, já que os mesmos, ao serem questionados sobre a época em que se localizava o passado do qual tanto tinham saudade, não sabiam, ou apresentavam informações cronológicas vagas ou divergentes. Cada morador depositava num determinado espaço de tempo indizível ou incalculável a sua imagem mais valorizada, sua concepção ideal de cidade passada (Prado, 1997). Na Gamboa não foi diferente: os moradores antigos sempre falavam comparando a atual atividade da pesca com a atividade no passado, mas em geral não localizavam essa relação cronologicamente, mesmo quando eu perguntava diretamente “em qual década isso se deu”. Todos os entrevistados passavam quase os mesmos dados em relação a esse passado no qual a pesca era farta, o pescador era valorizado e a lagoa ia até a porta das casas na encosta do Morro do Telégrafo, mas poucos sabiam determinar o ano ou a época exata em que isso acontecera. É fenômeno social semelhante, de certa forma, com o que Malinowiski descreve quando os nativos de Trobriand lhe falavam sobre acontecimentos mitológicos passados, que lhe diziam terem acontecido “no tempo de seus pais”, sem definir exatamente que tempo seria esse (Malinowiski, 1976).
As reflexões de Prado e Malinowiski acerca do “tempo mítico” parecem ser de suma importância para as reflexões dos estudantes de história. Pode ser que, enquanto historiadores, saibamos localizar exatamente determinados fatos em espaços de tempos e datas, ao contrário dos casos apresentados. Isso não impede, porém, que depositemos em um ou alguns desses espaços a nossa imagem mais valorizada, nossa concepção ideal de cidade, de mundo ou de instituição. É o caso típico de interpretações históricas que definem um fato, um período ou um personagem como “herói” ou “vilão”, “bom” ou “mau”, perigo este que, para Geertz. É o maior da contemporaneidade, muito mais que o etnocentrismo, o universalismo ou o racismo (Geertz, 2001). Se a pergunta que se segue à afirmação bíblica “onde está o teu tesouro, aí está o teu coração” é “onde está o teu coração?”, cabe perguntar diante do exposto: onde está o teu tempo?

V . Tradições e manifestações religiosas – breve panorama

Não há dúvidas de que as imagens de festas são associadas à marca de um povo, como defende Martha Abreu (Abreu, 1999). Nossa pesquisa não entrou ainda a fundo nessa temática em relação aos pescadores da Gamboa, mas um panorama leve pode ser traçado sobre os dados colhidos.
Não há dúvida de que a grande manifestação religiosa cultural dos pescadores é a festa do padroeiro com sua respectiva barqueata. A Procissão marítima do dia de São Pedro, faz os pescadores enfeitarem seus barcos e singrarem pelo Canal Itajurú em direção à Boca da Barra todos os anos. Não pude colher muitas informações sobre as representações dos pescadores acerca da cerimônia, mas pareceu-me claro que o evento já sublimou o apego institucional religioso há muito tempo – pescadores associados e membros da Diretoria da APEAG, de confissão religiosa evangélica (ou protestante, como queiram) são incentivadores da procissão e falam com sorrisos sobre as cerimônias no passado, retomando aqui meu paralelo com as reflexões de Martha Abreu ao falar sobre as Festas do Divino, quando defende a aproximação entre as mesmas e os traços que definem a nação e, em menor escala, as cidades, suas gentes (Abreu, 1999).
Os pescadores me falaram ainda de tradições que se perderam, como o Bumba meu Boi, que consistia em fantasiar um morador com uma cabeça de boi de madeira e vestes para ir às casas do bairro fazendo folias com os habitantes. Outra tradição lembrada com saudade é a festa junina no barracão de bambu, que era construído comunitariamente pelos moradores para abrigar a festividade. Relatos de moradores garantem que a construção comunitária do barracão era mais empolgante do que a própria festa para alguns, lembrando novamente as reflexões de Malinowiski acerca da utilidade de certos trabalhos comunitários na sociedade trombriandesa e suas realizações por motivações de regra social e costume (Malinowski, 1976).
Tradições mais recentes, como o próprio Festival de Culinária da Pesca e o Futebol do Preto e do Branco têm em geral certo caráter externo e ainda vivem período de fixação no imaginário do bairro, o que não quer dizer que não se prendam às tradições locais. O Futebol do preto e do Branco é um fenômeno social interessantíssimo, ao dividir o jogo entre um time de negros e outro de brancos. Pude acompanhar o evento há cerca de dois anos e observei uma dificuldade na definição dos jogadores que poderiam integrar um ou outro time. Entretanto, parece-me que a mensagem coopera mais com as tendências universalistas de combate ao racismo da UNESCO, criticadas por Lévi-Strauss (Lévi-Strauss, 1985), e que são as que vemos em determinados discursos vigentes em nossa sociedade, do que propriamente numa afirmação dessa segregação. Entretanto, isso não deixa de tornar o fenômeno interessante para o estudo etnográfico, ao contrário. Cabe lembrar também que minha pesquisa encontra-se desenvolvendo essa fase, no sentido de relacionar o que chamamos de novas tradições do bairro com a atividade pesqueira, numa comparação à relação íntima que ambas tinham entre si no passado do bairro.

Conclusão

Há quem diga que concluir é meramente voltar onde tudo começou. Não desejo me colocar fora desta ordem, e também eu quero voltar ao início. Ao escolher o título de minha pesquisa, optei por Sociedade de Rede, em primeiro lugar, numa paráfrase à célebre obra da sociologia denominada Sociedade de Esquina, de William Foote-White. Mais que isso, um segundo motivo de escolha do título foi a visualização de que a identidade social e cultural da pesca na Gamboa constituía uma verdadeira rede, com fronteiras sociais abertas e dinâmicas, onde uma série de objetos, símbolos, atores sociais, núcleos de atores sociais e outro grupos contrastantes, estavam relacionados como nós em redes de pesca, emaranhados, ou numa tradução mais provocadora do termo entangled, utilizado por Nicholas Thomas, estavam enredados (Thomas, 1991).
Essa Sociedade de Rede, por sua vez, é vista por nós como um Fato Social Total, segundo conceito desenvolvido por Marcel Mauss e interpretado por Holier (Holier, 1972), ao entendermos que, analisado a cultura da pesca no bairro em seu nível, somos remetidos automaticamente a uma compreensão geral de toda a cultura, história e identidade do bairro, nos fazendo visualizar, a partir de sua análise isoladamente, “uma ampla rede de relações sociais e influências culturais” (Malinowski, 1976, p.366).
Seria lugar comum recebermos críticas por utilizarmos autores divergentes ao apontar nossas defesas na pesquisa sobre a cultura pesqueira na Gamboa. O conceito de Fato Social Total, de Mauss, tem clara inspiração no trabalho de Malinowiski sobre os nativos de Trobriand (Malinowiski, 1976), trabalho este que recebe críticas de Nicholas Thomas (Thomas, 1991), autor do qual importo e aproveito noções, como a de “objetos enredados” e “promiscuidade dos objetos”. Como me defenderia? Convocaria Bourdieu, que ao tratar da profissão de sociólogo defende que

A questão da filiação de uma pesquisa sociológica a uma teoria particular do social (...) é sempre secundária em relação à questão de saber se tal pesquisa tem a ver com a ciência sociológica: com efeito, o único critério para responder a tal pergunta reside na aplicação dos princípios fundamentais da teoria do conhecimento sociológico, que, como tal, não estabelece qualquer separação entre autores que, em princípio, estariam separados no terreno da teoria do sistema social. Se a maior parte dos autores foram levados a confundir com sua teoria particular do sistema social a teoria do conhecimento do social que utilizavam – pelo menos implicitamente – em sua prática sociológica, o projeto epistemológico pode servir-se dessa distinção prévia para aproximar autores cujas oposições doutrinais dissimulam o acordo epistemológico. (Bourdieu, 2002, p.14)

Não sei se bastaria para convencer aos que o próprio Bourdieu chama de “sumos sacerdotes do método”, afinal, poderiam argumentar que o próprio Bourdieu faria parte de uma outra “escola”, e então, seríamos desmentidos ao infinito, e a reflexão acadêmica permaneceria engessada dentro de cada “escola” – supondo que elas existam – como mônadas acadêmicas. Reconheço a necessidade da vigilância epistemológica que o próprio Bourdieu defende, isto é, a necessária atenção do pesquisador ao próprio erro e a abertura à possibilidade de, a partir dele, aperfeiçoar sua pesquisa. Por outro lado, reconheço também – e uso como defesa – o pedido de alforria do autor em face dos catecismos metodológicos que, por vezes, nos impedem de traçarmos novos rumos, ainda que aperfeiçoáveis.
Ao falarmos desses itens culturais da pesca da Gamboa, tão enredados, emaranhados, ligados uns aos outros, com fronteiras tão frágeis, somos forçados a lembrar Geertz, que entende viver numa sociedade de “colagem”, dotada de “espaços mal definidos”, onde as tragédias do noticiário local se misturam às crises internacionais, onde as fronteiras e as culturas se misturam (Geertz, 2001). Marc Abélès, ao falar do mesmo assunto, visualiza uma sociedade híbrida, onde impera a mistura de culturas (Abélès, 2008). Diante disso, o que fazer para manter, como defende nosso recém-falecido Lévi-Strauss, uma impermeabilité, ou seja, um mínimo de etnocentrismo que, permanecendo com suas janelas de comunicabilidade cultural abertas, nos permita conservar nossa identidade cultural, nossos códigos, nosso símbolos (Lévi-Strauss, 1985)? Como zelar para que a identidade cultural do pescador da Gamboa possa se sustentar, diante dos ataques de uma modernidade e uma contemporaneidade vorazes, em meio à diversidade de representações e relações com fronteiras frágeis dentro de sua própria identidade, enredadas nela mesma, sem que, para isso, essa cultura precise fechar-se em si, num discurso poético e demagógico de pureza romântica e preservacionismo cultural inconseqüente?
Marc Abélès cita o que chama de Estudos Subalternos, como uma linha de pensamento dentro da antropologia, envolvendo ainda outras áreas acadêmicas, que entende a sociedade atual – híbrida e multicultural – como um espaço de tradução e negociação de culturas e códigos simbólicos (Abélès, 2008). Utilizado os ensinamentos de Derrida e Benjamin, Bhabha e outros estudiosos substituem a noção de “diversidade” pela noção de “diferença” ao analisar os discursos culturais. Para estes teóricos, o fenômeno de tradução entre as culturas se dá como nas pesquisas de Watson, cujas conclusões inferem que cada cultura absorve sim elementos das outras que com ela convivem, mas a partir de suas próprias traduções. É o caso do enka, adaptação cultural do tango argentino feita por japoneses em seu país. Além de alterações nos passos, os japoneses inverteram a lógica afetiva do tango com seu enka: se no tango é o homem que chora pela mulher que lhe abandonou, no enka, são elas que lamentam a partida do amado.
Os estudos subalternos, porém, podem não nos convencer. Uma coisa é a tradução feita pela cultura japonesa; outra é a que comunidades mais frágeis ou menos coesas podem fazer de outras culturas, correndo o risco de serem engolidas e anuladas por elas. Geertz, por isso, parece nos dar uma informação mais sólida.
Além de admoestar a todos nós (ele escreve no ano de 2000) que, enquanto pesquisadores das ciências humanas, devemos nos preocupar mais com uma investigação sobre a diversidade cultural dentro de sua própria sociedade do que com uma perspectiva global (e em geral enganosa) de harmonia perfeita entre povos e religiões, já que dentro das nossas cidades é que se encontram os grandes conflitos entre morais diversas, como entre o índio bêbado e o médico [2], Geertz nos lembra também que é a antropologia a grande ciência facilitadora desse processo, por ser a conhecedora por excelência das mentalidades alheias (Geertz, 2001).
Para Geertz, a antropologia e sua etnografia possuem a sede de conhecer o que é diferente de nós, não para nos ensinar a adotar a cultura que é diferente, mas para que possamos “aprender a apreender o que não podemos abraçar” (Geertz, 2001, p.84), num mundo onde as mentalidades alheias não estão mais em aldeias distantes, mas ao nosso lado, dentro das nossas cidades. Para Geertz, a antropologia pode ajudar a criar um rumo híbrido (utilizando-me de termo caro a Abélès) entre um etnocentrismo que feche as culturas em seus próprios planetas e um universalismo que deslegitima as fronteiras culturais entre os grupos. A antropologia seria o conhecimento que daria ao cidadão desta “colagem” que é nossa sociedade atual a possibilidade de conhecer o outro sem ser o outro, porque, para ele, não se trata de “amar ou morrer”; não é a busca de extremos que desejamos, mas sim o equilíbrio, o híbrido.
Preciso, ao concordar com Geertz de maneira geral, discordar dele em dois detalhes. Em primeiro lugar, não creio ser a antropologia a única ciência facilitadora desse processo de equilíbrio e hibridação da diversidade cultural. Acredito que os historiadores também podem e devem ser agentes facilitadores desse processo. Somente a história poderá auxiliar a antropologia e as demais ciências na árdua tarefa de contextualizar temporalmente uma identidade social e cultural. Somente a história poderá diagnosticar, ao traçar uma sequência temporal, elementos da vida social que podem ter sido decisivos, tanto para o atual estado dos códigos culturais de um grupo quanto para a mudança dos mesmos ao longo do tempo, ou ainda, a pré-disposição deles ao maior ou menor grau de negociações e traduções de identidade em relação a outras culturas. Só a história revelará marcas e feridas que serão essenciais para entender comportamentos atuais de diferentes mentalidades culturais no seio de uma cidade.
Minha segunda diferença para com Geertz diz respeito ao seu entendimento de que “não se trata de amar ou morrer” (Geertz, 2001, 81). Discordo: trata-se de amar sim. Sei que os sonhos românticos são perigosos, como diria o próprio Geertz, entretanto, acredito no amor. O amor real, que derruba barreiras, códigos morais, que perdoa erros e que é sincero consigo mesmo para o ser também com o outro, seja ele de outra religião, cor, orientação sexual ou costume. Repetindo Malinowiski, acredito que “é no amor pela síntese final, adquirida pela assimilação e compreensão de todos os itens de uma cultura, e ainda mais, no amor pela variedade e independência de várias culturas, que está o teste do verdadeiro profissional da autêntica ciência do homem” (Malinowiski, 1976, p.370).

Rafael Peçanha de Moura é graduado em história pela Universidade Veiga de Almeida e conclui pós-graduação Latu Sensu em Sociologia Urbana pelo Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
rpmcabofrio@yahoo.com.br
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Notas:

[1] Foote-White chama de “indivíduo-chave” ou “informante chave” o indivíduo que, fazendo parte do grupo social pesquisado, possui entrada em diversos segmentos do mesmo, protegendo e facilitando a aceitação do pesquisador no campo etnográfico, além de sugerir dados e métodos. São em geral líderes dos grupos pesquisados, tornando-se verdadeiros colaboradores de pesquisa. Em minha pesquisa, utilizei-me dos ótimos préstimos de membros da Diretoria da APEAG, em especial, Eliezer, Beto e Jussara, sem falar do intrépido Marquinho “Escopeta”. No artigo, respeito a livre tradução dos termos feitos pela autora. Para maiores informações acerca do conceito de “indivíduo-chave” em Foote-White, sugiro a leitura de FOOTE-WHYTE, William. Treinando a observação participante, trad. de Cláudia Menezes . In: ZALUAR, Alba (org.).Desvendando as máscaras sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.

[2] Geertz nos apresenta o caso de conflito angustiante entre questões morais dentro de uma sociedade: no sudoeste dos EUA, um programa de tratamento de saúde público com máquinas de hemodiálise organizava uma fila por ordem de gravidade de doenças. Ora, o tratamento em tela exigia dieta rigorosa por parte dos pacientes para que fosse eficaz de maneira prolongada. Ocorre que um índio alcoólatra recusava-se a parar de beber para se tratar. Por outro lado, os médicos locais não possuíam argumentos legais nem éticos para tirar o índio de sua colocação na fila, devido à gravidade de sua doença. Nem um nem outro poderiam ir contra suas próprias tendências ou os códigos culturais que existiam dentro de si, e não achou-se solução coerente para o conflito. O índio permaneceu fazendo seu tratamento, mesmo com as manifestações de contrariedade contida dos médicos e morreu pouco tempo depois. Geertz lembra que o índio não queria abrir mão de seu vício, necessário para afogar as mágoas, quem sabe, de uma repressão preconceituosa à sua etnia nas terras americanas; por outro lado, não queria acabar com sua própria vida, mas mantê-la o tempo que fosse necessário, apenas para aproveitar o prazer da bebida. Os médicos, por sua vez, não queriam abrir mão de suas condutas e códigos traçados acerca da prioridade de atendimento dos pacientes, mas também não poderiam ir contra as regras que eles mesmos criaram. A dificuldade de resolver o conflito, diante da necessidade do respeito à cultura e valores alheios, é um exemplo clássico da “colagem” que Geertz entende como imagem da sociedade contemporânea, onde elementos culturais que se opõem fortemente estão lado a lado. Por isso, a necessidade de estudar os conflitos morais dentro das cidades.