I
Carnavais de Guerra, o nacionalismo no samba
Dulce Tupy
Resumo
Elaborada no final dos anos 70 e início dos 80, a pesquisa sobre os chamados “carnavais de guerra” que virou livro em 1985 teve como objetivo demonstrar como as escolas de samba do Rio de Janeiro conquistaram espaço nos desfiles carnavalescos dos anos 30 e 40. Para serem aceitas socialmente, as escolas de samba tiveram que se enquadrar nos moldes dos enredos nacionalistas, com temática ufanista. Símbolo da resistência cultural e da afirmação da identidade do negro no Brasil, as escolas de samba percorreram um caminho sinuoso que às levou ao gigantismo que têm hoje. As bases desse crescimento foram alicerçadas nos desfiles da escola de samba Portela, no período em que o Brasil participou da II Guerra Mundial (1943, 44 e 45). A pesquisa foi feita a partir da bibliografia disponível na época (de 1978 a 1985), quando surgiram vários livros sobre música popular, escolas de samba e sambistas, motivados pela criação da Funarte (Fundação Nacional de Arte). A própria pesquisa, feita também em jornais do início do século XX e com base em depoimentos, foi possível graças a uma bolsa de estudo, conquistada pela autora, em concurso promovido pela Funarte. Com farta ilustração, o livro “Carnavais de Guerra, o nacionalismo no samba” desvendou enigmas do mundo do samba que se tornaram referência para estudos futuros e fonte de inspiração para inúmeros pesquisadores.
Palavras-chave: Escolas de samba, Nacionalismo, Carnaval, Rio de Janeiro
Há dois carnavais no Rio: o carnaval de salão e o carnaval de rua. O carnaval de salão surgiu em 1840 no Hotel Itália, onde se realizou o primeiro baile de máscaras de que se tem notícia. Também se realizaram na Praça Tiradentes outros famosos bailes de máscaras no Teatro São José. Já o carnaval de rua é resultante de várias manifestações populares portuguesas e antigos cortejos religiosos dos negros e mestiços.
Uma das origens do carnaval de rua se encontra no tradicional entrudo português, praticado pelos escravos nas ruas e nas casas pelos membros da corte e até pela família real, no Brasil Colônia. O entrudo era uma brincadeira de mal gosto que consistia em jogar água e farinha uns nos outros, ou até mijo. Mais tarde, no Brasil Império, surge o Zé Pereira, com seus bumbos de tradição lusitana, no Rio de Janeiro, marcando o carnaval de rua.
No final do século XIX, a procissão religiosa em homenagem a Nossa Senhora do Rosário (negra) trazia na frente um grupo de capoeiristas e uma ala de baianas chamadas então de “taieiras”. A procissão saía no período natalino. No dia de reis, 6 de janeiro, os ternos e ranchos de origem nordestina prestavam homenagem ao Menino Jesus, mas aos poucos foram perdendo o caráter religioso e se tornaram manifestações populares, com traços carnavalescos.
Também as tradicionais cerimônias de coroação do Rei do Congo, ocorridas no Brasil Colonial, durante as festas em homenagem a São Benedito (negro), aos poucos foram se transformando nas congadas e reisados que tanto influenciaram as manifestações carnavalescas e sobreviveram ao lado dos populares cordões. Mais tarde os cordões passaram a se chamar blocos (blocos de sujo, blocos de arrastão e blocos de embalo). Na origem de todas as escolas de samba sempre tem um bloco carnavalesco.
Na virada do século XIX para o século XX, havia no carnaval carioca duas grandes manifestações carnavalescas: os ranchos e as grandes sociedades, com seus desfiles de luxo. Em 1900, a população do Rio era de 600 mil habitantes, sendo 30% negros, 30% brancos e 40% mestiços! Em 1904, o prefeito Rodrigues Alves promove uma série de mudanças urbanas que transformam a cidade na moderna capital do país.
O maxixe era a música e dança adorada pela população, mas amaldiçoada pela elite, polícia e igreja. A elite frequentava clubs e praticava o rowing (regatas), o tennis, o rugby e o foot-ball. Enquanto nas gafieiras o povo dançava maxixe, nos salões afrancesados se dançava quadrilha, polca, valsa, rocambole, mazurca, varsoviana, escocesa (que veio do inglês shottish e acabou virando xote) entre outros gêneros europeus. O maxixe era a forma de dançar as músicas européias assim como o choro era a maneira de interpretar as partituras estrangeiras.
Na época, a música brasileira popular era: lundu, modinha, cançoneta, tango e maxixe. Os compositores eram: Chiquinha Gonzaga, Patápio Silva, Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth e outros instrumentistas, conhecidos como chorões. Os cantores mais populares eram: Baiano, Cadete, Eduardo das Neves e outros. Estava na moda fazer serenatas, piano na sala de visitas e saraus de poesia, onde despontava o poeta Catulo da Paixão Cearense, autor da célebre Luar do Sertão.
A imprensa começa a crescer e surgem as primeiras revistas ilustradas com fotografias disputando espaço entre os blocos de texto! A revista semanal Rua do Ouvidor critica o Zé Pereira, grupo carnavalesco que desfilava nas ruas fazendo barulho com seus adufos, tambores, bumbos, triângulos, panelas, pratos, facas, etc... Tanto o entruto como o Zé Pereira entram em desuso no início do século XX.
As chamadas Grandes Sociedades eram a nota chic no carnaval carioca. Era a manifestação carnavalesca da burguesia liberal, desde meados do século XIX, quando participavam das campanhas cívicas como a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República (1988 e 1989). Elas traziam para as ruas bandas de música e carros alegóricos. Mas não só de desfile luxuoso vivia o carnaval na época.
Os ranchos, com origem nos autos pastoris de natal, trazidos pelos migrantes nordestinos que chegavam ao Rio depois da Guerra do Paraguai, desfilavam acompanhados de orquestras de sopro e cordas, com melodias de ritmo lento (marchas rancho). Apresentavam também temas - que deram origem aos enredos - sobre a mitologia greco-romana ou lendas. Como novidade, os ranchos permitiam a participação das mulheres que eram as pastoras. Eram a manifestação carnavalesca da pequena burguesia e funcionários públicos do Distrito Federal.
Os cucumbis, grupos de origem africana e que deram origem aos antigos cordões, saíam às ruas com suas fantasias e instrumentos típicos: maracás, ganzás, omelês, cuícas, tambores, atabaques, apitos. Os cucumbis foram aos poucos incorporados no culto negro de Nossa Senhora do Rosário e desfilavam cantando músicas com refrões em banto e em português. Eram o divertimento do povão, principalmente do povo afro-brasileiro, composto em sua maioria de ex-escravos.
Na tradicional Festa da Penha, no subúrbio carioca, havia samba, batuque e capoeira. Nas casas das “tias” baianas tocava-se choro na sala de visitas e praticava-se o samba, o batuque e o candomblé no terreiro (quintal). Foi numa dessas casas, na Praça Onze, que surgiu mais tarde o primeiro samba de sucesso: o Pelo Telefone.
Em 1914, a primeira dama do país, a caricaturista Nair de Teffé, incluiu no programa de uma recepção palaciana uma apresentação do popular Corta Jaca, música da maestrina Chiquinha Gonzaga, no ritmo do maxixe. O episódio virou escândalo nos jornais e o ranzinza Rui Barbosa disse então que era um atentado à moral pública. Em 1915, Afonso Arinos realiza um ciclo de conferências sobre temas folclóricos em São Paulo, valorizando a cultura popular brasileira. No Rio, os músicos negros Pixinguinha e Sinhô são as grandes atrações nas festas mais animadas da cidade.
Em 1916, samba era a música popular temperada no folclore branco, índio, negro e mestiço do Brasil Colônia. Oriundo da fofa portuguesa e do lundu africano, ancestral do maxixe, o samba era cultuado na casa da Tia Ciata, freqüentada por João da Mata, mestre Germano, Hilário Jovino, Sinhô e Donga, entre outros bambas. A baiana Tia Ciata era casada com o médico negro João Batista da Silva que foi chefe de gabinete do chefe de polícia do Rio. Tia Ciata era ababalaô-mirim, do candomblé, e reunia a em sua casa a nata do samba. Expressão musical de um grupo marginalizado o samba já era um instrumento efetivo de luta pela afirmação da etnia negra na vida urbana brasileira. Porém, somente entre 1930 e 1940 o samba vai se tornar o gênero musical mais popular do Brasil.
Um dos sambas coletivos surgidos numa roda de samba na casa de Tia Ciata foi registrado por Donga como sendo de sua autoria. A partir daí nunca mais o samba foi o mesmo. Primeiro, porque um dos maiores compositores da época, o pianeiro Sinhô, passou a acusar Donga de ter registrado como seu uma composição coletiva. A polêmica ganhou a cidade a acabou projetando o samba Pelo Telefone nacionalmente.
Marco na história da MPB (Música Popular Brasileira) o Pelo Telefone, de Donga, gravado na Casa Edison, com a Banda Odeon, foi o grande sucesso do carnaval de 1917, projetando uma imagem positiva do samba. No mesmo ano o Pelo Telefone seria gravado também pelo popular Baiano e coro, divulgando ainda mais o primeiro samba de sucesso em todo o país. O Pelo Telefone não foi o primeiro samba gravado, mas foi o que se tornou uma referência, um símbolo, devido a sua enorme repercussão. Em 1913 já havia sido gravado o samba Em casa de baiana e, em 1914, A Viola está magoada. Mas ambos ficaram restritos a um público pequeno.
Com o sucesso do Pelo Telefone houve uma mudança na imagem do sambista que passou a ser considerado artista. No século XIX, os sambistas eram cercados pela polícia em suas próprias residências, eram levados para o distrito e tinham seus instrumentos confiscados. A partir do início do século XX, os sambistas passam a ser tolerados. Mas na Festa da Penha ainda era proibido o uso de pandeiros! O Pelo Telefone foi responsável também pela fixação do gênero musical – o samba – como música de carnaval. E representou o degrau por onde o negro subiu até alcançar o sucesso definitivo, através das escolas de samba, das rádios e da música popular.
Mas até chegar às rádios, nos anos 30, o negro teve que deixar sua condição de africano, no Brasil Colonial, para se transformar em escravo e de escravo em trabalhador livre, depois da Abolição da Escravatura. De mão de obra o negro se transformou em força de trabalho, ao se transferir do campo para a cidade. Para o negro, a cidade era o espaço da liberdade, para onde iam os escravos fujões e os libertos em geral. Portanto, a primeira e segunda geração de negros livres eram na verdade ex-escravos.
Assim, os negros não foram integrados à cidade imediatamente, após a Abolição, sendo condicionados pelos fatores econômicos e pela herança cultural da escravidão. Preteridos pelos imigrantes, passaram a constituir um volumoso contingente de desocupados. Porém, junto com os negros, vinha a cultura, a tradição e a religiosidade negras, onde predominava o ritmo. O ritmo, na música ocidental, sobrepõe-se à melodia e à harmonia, no século XX, por influência da cultura africana, advinda do Continente Africano, no período colonial. E, da mesma forma que o jazz surgiu nos Estados Unidos, surge na mesma época no Brasil o samba, no contexto da urbanização da sociedade brasileira. Agora, em vez da sertaneja Luar do Sertão o sucesso é o samba Pelo Telefone, ressaltando um aparelho de comunicação, o telefone, que se tornou símbolo da modernidade.
No período entre as duas grandes guerras mundiais, floresce o nacionalismo. No Brasil, a Semana de Arte Moderna, em 1922, coincide com o aparecimento do rádio, inaugurado de forma experimental durante as Comemorações do Centenário da Independência. No ano seguinte, em 7 de setembro de 1923, o rádio começa a ser transmitido comercialmente, mas com caráter exclusivamente educativo. Surgem novas gravadoras e novos artistas.
Em 1928, é fundada a escola de samba Deixa Falar, no bairro do Estácio, perto do Instituto de Educação, que forma as professoras da cidade. A escola desfilou entre as estações de trem da Central do Brasil e da Leopoldina. Mas em 1932, a pioneira Deixa Falar se transforma em rancho, talvez porque nesta condição tivesse acesso a uma pequena subvenção da Prefeitura, que as escolas de samba não tinham... A partir de 1930, vários blocos passam a se chamar escolas de samba. A primeira escola a apresentar enredo foi a Portela, em 1931: Sua majestade o samba. A alegoria era uma barrica.
Embora o desfile das escolas de samba ainda fossem ignorados pelo grande público, o samba como gênero musical estava em ascensão. Em 1929, foi feita a primeira gravação em disco, com acompanhamento de percussão; uma típica batucada de escola de samba. A música foi o samba Na Pavuna, gravado por Almirante e o Bando dos Tangarás. No rótulo do disco o gênero musical é classificado como “choro de rua”.
Os enredos nas escolas de samba nasceram sob a égide do nacionalismo. Porém, os enredos nacionalistas surgiram de fato nos ranchos, como Os Destemidos que apresentaram o enredo Pela grandeza da Pátria e o Ameno Resedá que apresentou o enredo Hino Nacional. Também a escola de samba Deixa Falar, em 1931, fez um enredo sobre a Revolução de 30: A Primavera e a Revolução. Mas ainda sem sintonia com o nacionalismo e mais voltada para si mesma e seus próprios valores, em 1932, a Portela sai com o enredo Carnaval Moderno, enaltecendo o valor do sambista.
Nas rádios, o samba substituira o maxixe. Na indústria fonográfica, o processo mecânico foi substituído pelo elétrico, agilizando as gravações e proporcionando o surgimento de grandes ídolos como a cantora Carmem Miranda. Em 1933, o desfile das escolas de samba entrou pela primeira vez no Calendário Turístico do Touring Club e Prefeitura do Distrito Federal. As escolas de samba, então, recebem pequenos subsídios da Prefeitura para desfilar.
Neste ano, dois quesitos foram obrigatórios nos desfiles das escolas de samba: a ala das baianas e a proibição do uso dos instrumentos de sopro. Os enredos refletiam o próprio universo do samba ou exploravam a temática folclórica. Neste sentido, eram uma auto-afirmação da própria cultura negra. O primeiro samba-enredo teria surgido na Mangueira, em 1933; era o Homenagem, de Carlos Cachaça. Nesta época, os sambas para os desfiles tinham uma primeira parte e improvisos, uma espécie de partido-alto. Muitas vezes a mesma escola apresentava mais de um samba no desfile.
Em 1935, data do primeiro desfile oficial das escolas de samba, promovido pela Prefeitura e pelo jornal A Nação, a Portela (que havia mudado de nome, pois antes se chamava bloco Vai como pode), desfila com o samba Guanabara, de Paulo da Portela. Em 1936, a Unidos da Tijuca desfila com o samba Natureza bela do meu Brasil. Este foi o primeiro samba-enredo que tocou nas rádios, 10 anos depois de ser lançado no desfile, quando foi gravado pelo cantor Gilberto Alves e Orquestra Fon-Fon, em 1946.
Até então, praticamente não haviam surgido os enredos nacionalistas nas escolas de samba. A moda dos enredos nacionalistas havia sido lançada pelo escritor Coelho Neto que, em 1923, em crônica publicada no Jornal do Brasil, deu a sugestão para os compositores. Em outra crônica, Coelho Neto dizia: “o Povo aprenderá alegremente através da poesia, de suas lendas, dos episódios de sua história e feitos de seus heróis”. O próprio escritor sugeriu em 1922 a criação de um poema sinfônico intitulado Brasil.
Em São Paulo, a Semana de Arte Moderna e o levante dos tenentes no Forte de Copacabana, no Rio, são outras vertentes do nacionalismo que desembocaria na Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas. Em 1937 o Estado Novo decretado pelo presidente Vargas é a expressão radical do nacionalismo político brasileiro, sob influência do nacionalismo europeu que começa a se espraiar por todo o mundo.
Um ano antes, em 1936, o programa A Hora do Brasil, instituído pelo presidente Getúlio, foi transmitido diretamente do Morro da Mangueira, no Rio, para a Alemanha, dias antes do carnaval. Em 1937, a polícia não permitiu que algumas escolas de samba desfilassem depois de meia-noite, hora em que a luz foi desligada... A Portela desfilou com o enredo O Carnaval.
Em 1938, não houve desfile, devido às chuvas. A Portela trouxe o enredo A democracia no samba. Começa a onda dos enredos nacionalistas. No Estatuto da recém-fundada UGES, União Geral das Escolas de Samba, surge a obrigatoriedade dos enredos sobre fatos e vultos da história do Brasil nos desfiles das escolas de samba. Com base nesse dispositivo, em 1939, pela primeira vez é punida uma escola de samba, por não apresentar um enredo nacionalista: a Vizinha Faladeira, do bairro da Saúde, perto do cais do porto. A escola foi desclassificada por apresentar o enredo Branca de Neve e os 7 Anões, inspirado no filme colorido de Walt Disney, que fez um sucesso estrondoso nos Estados Unidos e no Brasil.
Neste ano, a Portela foi vitoriosa com o enredo Teste ao samba, onde apresentava alegorias de mão que eram diplomas de papel e um quadro-negro onde se lia: “Prestigiar e amparar o samba, música típica e original do Brasil, é incentivar o povo brasileiro”. Agora sim, a escola de samba era uma escola mesmo, com quadro-negro, diploma e até caráter cívico, nacionalista!
Porém, em 1940, a Portela vem com o enredo Homenagem à Justiça, com um samba de Paulo da Portela. Conta a lenda que Paulo não teve tempo de ensaiar bem o samba. E, na hora do desfile, em vez do coro cantar “Salve a Justiça”, o coro cantou “Pau na Justiça”, diante dos jurados, e a escola não ganhou o primeiro lugar! Mas os portelenses aprenderam a lição. A partir de 1941, a Portela vai conquistar 7 vezes o campeonato, com enredo patrióticos, ao gosto nacionalista.
O nacionalismo estava no auge. Em 1938, Carmem Miranda é consagrada no filme Banana da Terra, vestida de baiana interpretando a música de Dorival Caymmi O que é que a baiana tem?, acompanhada do Bando da Lua. O número musical depois foi apresentado no Cassino da Urca. O filme foi a última atuação de Carmem no cinema brasileiro, antes de ir para os Estados Unidos, onde continuou sua carreira musical e cinematográfica.
Em 1939, o compositor Ary Barroso lançou o samba Aquarela do Brasil, típico samba-exaltação, que fez retumbante sucesso no Brasil e no exterior, sendo até hoje um dos sambas mais gravados e executados no mundo, só comparável ao Garota de Ipanema, de Vinícius de Morais e Tom Jobim, no estilo bossa-nova. Em 1944, em plena II Guerra Mundial, Ary Barroso fez duas viagens aos Estados Unidos, onde participou do filme Você já foi à Bahia?, de Walt Disney, o desenhista que criou a imagem dos pracinhas brasileiros na Itália: uma cobra fumando! E o papagaio Zé Carioca, como personagem emblemático do Brasil, para contracenar com o americano Pato Donald, ídolo das históricas em quadrinhos adorado por multidões de crianças, jovens e adultos.
Em 1941, a Portela lança o seu primeiro enredo nacionalista: Dez anos de glória. O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo, havia promovido em 1939 um concurso para premiar os melhores shorts cinematográficos e os sketches radiofônicos sobre os 10 anos do governo Vargas a serem comemorados no ano de 1940. É possível que este fato tenha influenciado os sambistas da Portela. Neste ano a Portela ganhou o primeiro de uma série de 7 campeonatos, uma façanha jamais realizada por outra escola de samba.
Em 1942, o enredo com que desfila a Portela é: A vida do samba. O enredo destacava a origem indígena do samba e a figura típica do malandro carioca, com camisa listrada. Também homenageava a cantora Carmem Miranda que fora morar nos Estados Unidos, representado por uma alegoria com um arranha-céu. A Portela ganha o seu segundo campeonato. Em agosto de 1942, o Brasil declara guerra ao Eixo (Alemanha, Itália e Japão).
Em 1943, as manchetes do jornal O Globo alertam: “Não haverá carnaval para os inimigos do Brasil” (os imigrantes alemães, italianos e japoneses)... A Portela torna-se tri-campeão no desfile das escolas de samba, com o enredo Carnaval de Guerra e samba de Alvaiade, Nilson Gonçalves e Ataulfo Alves, intitulado Brasil. Em 1943, 44 e 45, os enredos das escolas de samba foram liberados pela Liga de Defesa Nacional e pela recém formada União Nacional dos Estudantes (UNE).
Em 1944, a Portela desfilou e venceu mais uma vez o campeonato com o enredo Motivos Patrióticos. Em 1945, um desfile das escolas de samba, no Estádio São Januário, do Clube de Futebol Vasco da Gama, em São Cristóvão, terminou em briga e um morto! No carnaval, foi proibida a dança do frevo nas ruas, mas foi permitida nos clubes. A Portela vence mais um campeonato, com o enredo Brasil Glorioso e samba de Jair Silva. Em abril, Getúlio Vargas decreta a anistia aos presos políticos e em maio é extinto o DIP.
No rastro do pós-guerra, o carnaval de 1946 foi o chamado Carnaval da Vitória. Era o primeiro carnaval depois do fim da guerra e com o país livre da ditadura. Esperava-se um carnaval esplendoroso, mas não foi. Pela sexta vez a Portela conquista o primeiro lugar no desfile das escolas de samba, com o enredo Alvorada do Novo Mundo, que trazia inclusive uma alegoria que representava as Nações Unidas. O samba de Boaventura foi Carnaval da Vitória.
No chamado Carnaval da Paz, em 1947, a Portela vence pela sétima vez consecutiva, tornando-se até hoje a única escola de samba a conquistar 7 campeonatos seguidos. O enredo foi Honra ao Mérito, em homenagem ao pai da aviação, Santos Dumont. O significado das 7 vitórias da Portela, de 1941 a 47, foi a consolidação de um modelo de desfile, calcado nos enredos nacionalistas, históricos e ufanistas. Este modelo iria perdurar por muito tempo, até que nos anos 60, os enredos de temática negra, no Salgueiro, representarão um novo ciclo na evolução das escolas de samba cariocas.
Porém, é preciso destacar que sambas produzidos dentro da estética do nacionalismo hoje se tornaram verdadeiros clássicos da música popular brasileira e são reconhecidos como verdadeiras obras primas, como é o caso do famoso samba-enredo Tiradentes, de Mano Décio da Viola, Penteado e Estanislau Silva, da escola de samba Império Serrano. Em 1948, o Império Serrano já havia tirado o 1º lugar no desfile com o enredo Castro Alves. Repetiu a dose, com maestria, com o enredo Exaltação a Tiradentes, em 1949. E, em 1950, conquista o tri-campeonato com Batalha Naval do Riachuelo. Em 1951, é a vez do tetra-campeonato com o enredo Sessenta e um anos de República, portando o majestoso samba de Silas de Oliveira, homenageando os presidentes do Brasil, em especial Getúlio Vargas que acabara de se reeleger, com expressiva votação popular.
Era a discípula Império Serrano seguindo os mesmos passos da Portela. Neste caminho de mão dupla, em que as escolas de samba vão sendo assimiladas socialmente, ao mesmo tempo em que vão sedimentando o caminho para a afirmação da cultura negra que representam, o carnaval passa por diversas transformações. Nos anos 60, as escolas de samba conquistam a classe média e atinge os grandes meios de comunicação. A cobrança de ingressos, a transmissão dos desfiles na TV, a construção da Passarela do Samba (Sambódromo) e a criação da Liga das Escolas de Samba dos Rio de Janeiro (Liesa), são aspectos que determinaram uma nova fase no carnaval carioca.
Hoje as escolas de samba fazem parte da indústria turística do país e o samba é um verdadeiro símbolo da nação. Portanto, agora consolidadas, as escolas de samba já não precisam mais das amarras do nacionalismo e os enredos são cada vez mais criativos, voam nas asas da imaginação. E o samba, música negra, por excelência, continua vivo como sempre, em suas mais diversas modalidades, atingindo um público cada vez maior no Brasil e no exterior, passando por gerações e gerações de brasileiros ao longo dos séculos.
Dulce Tupy – Jornalista, pesquisadora de música popular brasileira, membro da Academia de Letras Rio-Cidade Maravilhosa, editora do jornal O Saquá, de Saquarema-RJ e Diretora da Tupy Comunicações S/C Ltda. Contato: Tel. (22) 2651-7441 / 9967-4693. Av. Ministro Salgado Filho, 6661, Barra Nova, Saquarema – RJ. Email: dulcetupy@osaqua.com.br
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