quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Artigos completos - VII Congresso de História da Região dos Lagos


VI
Modernidade: o Tempo da Exclusão
João Gilberto da Silva Carvalho
Doutorando no PPGP – UFRJ

Resumo: Modernidade não se refere apenas a um período de tempo. O conceito abrange um modo de vida e uma visão de mundo típicos do homem ocidental e que foram capazes de promover sua hegemonia ao longo dos últimos séculos. Pela força das armas ou pela sedução dos discursos, o Ocidente se impôs. Aos demais povos, transformados em “outro” pelo processo histórico, restou a submissão ou a exclusão pura e simples; são os exóticos, primitivos ou atrasados que não participaram da formação do que se chama “civilização”. Neste sentido, a modernidade é um tempo de exclusão. Como parte de nossos estudos sobre identidade e alteridade, e com base na teoria das representações sociais, apresentamos o conceito de modernidade e sua relação com os processos mais amplos de exclusão. São reflexões baseadas que estão no centro dos debates hodiernos em ciências humanas e das tranformações sociais que temos diante de nossos olhos, pondo em xeque o conceito ao mesmo tempo em que abre novas perspectivas de debates sobre o relacionamento entre os povos.
Palavras-chave: modernidade, pós-modernidade, identidade, alteridade.

1. Introdução
Modernidade é uma expressão polissêmica e o único consenso possível é quanto ao sentido usual da palavra, de contraposição ao antigo, ruptura ou mesmo indicativo de uma nova etapa. Os tempos modernos figuram na tradicional periodização da história como aquele que sucede o medieval, é a Idade Moderna, que se inicia com a conquista de Constantinopla pelos turcos em 1453. É um marco, pois dada a impossibilidade de se manter o comércio com o Oriente pela via mediterrânea teria impulsionado as Grandes Navegações e todo o conjunto de transformações subseqüentes que marcariam o continente europeu. É um modelo que parte do princípio de que existe uma única história mundial, uma seqüência linear de eventos, cujo epicentro se localiza na Europa. A abordagem tradicional, independentemente de seus fundamentos é teleológica, ou seja, os acontecimentos já estão previstos, arrumados previamente em função do desenvolvimento ulterior. Como numa corrida de revezamento, as antigas civilizações passam o bastão para os gregos, que o entregam aos romanos e assim até o triunfo da civilização européia. Os povos que não atingem os patamares preestabelecidos ficam para trás; os ibéricos, por exemplo. Portugal e Espanha saem na frente, mas não conseguem atingir todos os requisitos da evolução capitalista e são ultrapassados pelas monarquias da Holanda, França e Inglaterra. Neste sentido, modernidade é quase um corolário do desenvolvimento capitalista; e os ibéricos não teriam sido modernos o suficiente.
Os historiadores distinguem moderno de modernidade; por moderno temos uma fase ou “idade” nova em substituição à medieval – uma classificação criada ao tempo do iluminismo e que tem como central a idéia de renascimento, que significa uma ruptura com o modo de vida anterior. A modernidade é a consciência de ser moderno, ter a convicção de ser diferente e expressão desta diferença; significa uma nova mentalidade e uma convicção desta singularidade, baseada em dois vetores: a razão e a história. Por um lado, tal consciência gera o triunfalismo das filosofias da história; por outro, o prenúncio de seu esgotamento, traduzido no pessimismo de Nietzsche, no desespero de Kierkegaard e na utopia de Marx – para nos limitarmos aos autores indicados por Arendt neste processo (2007, p.63). Muito bem arrumado este esquema. Entretanto, nem os renascentistas sabiam do seu renascimento, nem os medievais se percebiam na “idade das trevas” – assim como não sabemos mais quem somos na atualidade, face às mudanças que nos levam diariamente à perplexidade. É possível ainda dividir a modernidade em duas fases (Falcon, 2000) ou três (Berman, 2007) e acreditamos que outras divisões também possam ser feitas, havendo alteração nos critérios de caracterização do processo.
Por trás do período e conceitos que traduzem a modernidade, há um “quebra-cabeça” cuja montagem nos conduz às bases da hegemonia européia: humanismo, absolutismo, burguesia, expropriação camponesa, industrialização, iluminismo, revoluções, cidades, exércitos e burocracias. São peças de um jogo que teve a força de legitimar através da história a visão européia de mundo; é, portanto, uma ideologia de pretensão universal. Algumas das peças parecem não se encaixar adequadamente no tabuleiro, enquanto outras parecem ser de outro jogo, com lógica própria – sem contar que o moderno nem sempre é tão novo, exceto no discurso. Não obstante todas as críticas ao modelo evolucionista – ou aos seus aprimoramentos, como a inclusão de orientais na referida escalada – ainda é desta forma que são estruturados em grande parte os livros didáticos e documentários sobre “o progresso das civilizações”. Enquanto os acadêmicos debatem a modernidade, os alunos do ensino básico estudam em suas aulas de história o moderno como fatos da Idade Moderna, pelo menos aqui entre nós brasileiros ocidentais, cuja influência européia nos currículos é nítida . E assim é consagrado não apenas um padrão de modernidade, como os fundamentos de um imaginário cujas conseqüências ainda se fazem sentir.
Dussel (2005) indica o ano de 1492 para marco de modernidade, quando se estabelece a seu ver uma geografia de caráter mundial. O planeta se torna um só lugar, tendo por centro a Europa. O “mundo em cacos” , formado por ilhas e abismos lendários ganha sentido, a finisterra deixa de ser o fim do mundo, apenas o limite de uma de suas quatro partes constituintes. A partir dos Descobrimentos o europeu se reconhece como um agente atuante sobre um mapa mundi, seja em nome da cristandade, seja para conquistar riquezas em nome do rei. O filósofo argentino declara: “Para nós, a ´centralidade´ da Europa Latina na História mundial é o determinante fundamental da Modernidade” (ibid., p.61).
Wills (2001) enxerga no ano de 1688 as características da Era Moderna e se empenha em costurar os fatos marcantes do período; da brutalidade das minas de Potosi à Revolução Gloriosa, alinhavadas às reflexões de um sábio confucionista na China dos Qing, entre aborígenes da Austrália, sultões, filósofos e reis. Já o historiador da connected historie, Subrahmanyam (2002, p. 291), afirma que apontar o império mongol como ponto de partida para a modernidade pode até soar como impensada ousadia, embora a noção de “descoberta”, presente nas viagens ultramarinas, também se aplique aos “descobrimentos” do comandante chinês Zheng He. O autor não chega a declarar que dos Song aos Ming, portanto entre os séculos X e XVII, o império celeste foi certamente o mais poderoso do mundo, consideradas suas riquezas e poderio militar. Mas nós o faremos mais adiante, tendo como indicador a estreita ligação entre hegemonia mundial, poderio militar e desenvolvimento econômico (Kennedy, 1989).
Fora do âmbito dos historiadores, o sociólogo Giddens estuda a modernidade como parte de sua intenção de formular um conceito de globalização e os caminhos para a Terceira Via – e seu marco é o século XVII (Giddens, 2001). Em sua análise antropológica, Balandier (1997) afirma que o século XVI reuniu todas as características típicas da modernidade. Em Foucault (2007) não há datas precisas e nem a preocupação explícita com o conceito, embora uma nova epísteme possa ser delineada a partir do século XVIII . Os marxistas “clássicos” não utilizaram a expressão modernidade, que não seria compatível com os “modos de produção”, mas as rixas com os chamados pós-modernos ainda rendem bons frutos . Há, portanto, conceitos que por assim dizer concorrem com o de modernidade, como o já tradicional sistema-mundo criado por Wallerstein, que estabelece a Revolução Francesa e o Maio de 68 para marcos inicial e final do período; ou ainda as abordagens “liminares” de Mignolo (2003) e Dussel (2005). Wallerstein refuta a noção de Terceiro Mundo e de forma bastante sintética podemos dizer que seu trabalho é um aprofundamento das teses marxistas. No Brasil, o conceito de “sentido da colonização”, teorizado por Caio Prado , já fazia menção à divisão dos países em função do mercado internacional. E o historiador brasileiro recebeu as mesmas críticas que o sociólogo americano: ênfase excessiva nos processos econômicos. Mas a contribuição de Wallerstein reside em ter atribuído um caráter mais dinâmico ao sistema, de interdependência e desigualdade entre as partes, sem endossar a visão idílica da “aldeia global”. O capitalismo é o “motor” do sistema, cujo dinamismo inaugura uma ordem completamente distinta das precedentes, capaz de inserir praticamente todos os cantos do planeta em sua órbita (Giddens, 1991). Já o conceito de modernidade engloba um conjunto mais amplo de transformações em que a própria noção de mudança é o epicentro do sistema.
A questão de datas não é mero capricho e situar a modernidade no século XVI ou no século XVIII tem caráter geopolítico. Em meados dos Quinhentos a Europa era a porção mais “atrasada” do mundo - levando-se em conta o poderio econômico e o militar, parâmetros que norteiam a classificação de Kennedy (1989) para designar grande potência, em que pese a simplicidade do modelo, menos sofisticado, por exemplo, que o de hegemonia. A China dos Ming dominava a Ásia, enquanto os turcos representavam em pleno século XVI uma série ameaça às nações cristãs. Assim, a modernidade que tem por base o Dezesseis há de incluir não apenas a influência e participação dos grandes impérios do Oriente, como também dos complexos povos do Novo Mundo. É possível apresentar um exemplo que nos envolve diretamente. Nossas pesquisas sobre chineses nos levaram a contribuir em Impérios na História , livro organizado por eminentes historiadores brasileiros, e assim apresentamos o império Ming. O capítulo foi inserido entre “Os Impérios na Época Moderna”, uma inclusão na linha temporal tradicional de outros impérios antes ignorados, como o chinês e o otomano, ainda assim uma perspectiva tradicional.
As datas são componentes de uma concepção de história tradicional, linear e válida para todos os povos. Desde o império romano se estabelece a pretensão de uma história universal no Ocidente que, ao mesmo tempo em que consagra os “eleitos”, abre a possibilidade de salvação aos outros, sejam eles bárbaros ou hereges. A história descortina o sentido da missão ocidental: laica e racional nos objetivos, religiosa nos sentimentos que a motiva. De Santo Agostinho às filosofias da história, história e destino se confundem. O eixo do tempo se estabelece “antes ou depois de Cristo”, ainda que outros povos “persistam” em seus sistemas de datação. Para Giddens (1991), os calendários são traços típicos da modernidade: a preocupação com o controle do tempo e a unificação de práticas sociais à distância. Não há história sem calendário, nem história universal sem um eixo unificador. Os romanos inventaram não só a tradição como nos afirma Arendt (op. cit.), mas também a história universal – ou a história das civilizações como é ostentada em capas de enciclopédias –, uma única via de sentido temporal a ligar os povos a partir de padrões de referência, que tanto pode ser o de qualificação de grande potência, como de modelo de civilização.
A modernidade situada no século XVIII encontra a Europa absoluta – literalmente. É a Europa do Estado-nação despótico, conquistador e voraz, por um lado; racionalista, cristão e civilizador, por outro. À vontade para recriar o seu passado e assim deixar de fora do “processo civilizador” todos aqueles povos ou nações que a ela não se ajustem. É na história, ou melhor, na mitistória que os grandes reinos europeus irão buscar legitimação (Apostolidès, 1993). O Antigo Regime europeu se encontra no auge e próximo do fim; as instituições já se encontram maduras para consagrar ou parir instituições e agentes que formam nossa realidade social no século XXI. A modernidade do XVIII tem como referência a Revolução Francesa, de acordo com o conhecido esquema: ascensão da burguesia e do capitalismo com a destruição da sociedade estamental.

2. Entre muitas modernidades ou a ilusão de ser moderno
O que é moderno tem como contrapartida a tradição ou, na pior das acepções, o atraso. A modernidade nos lembra aquela definição de literatura, de novidade que é sempre novidade. E se o antigo/atrasado não se oferece como uma condição desejável a grupos ou pessoas, justifica-se então a busca pelo incessante moderno/modernidade – afinal, quem não deseja ser moderno? Mas se mantém como uma “natureza” daqueles que a criaram, independentemente dos esforços dos demais povos em atingi-la. Assim, a modernidade não é para todos senão na condição de paródia ou falsificação e o esforço de ocidentalização produz situações no mínimo inusitadas, como as cirurgias para aumento dos olhos que tem ocorrido na China. A história se repete como farsa para alguns e realização de antigos sonhos bíblicos para outros – esta é a diferença entre “eles” e “nós”. Os modernos pretendem resguardar a tradição dos outros ao mesmo tempo em que buscam o paraíso prometido por Deus ou pela Razão, não há tanta diferença assim. Um bom exemplo nos é oferecido por Giddens, em suas palavras:
O termo “tradição”, tal como é usado atualmente, é na verdade um produto dos últimos duzentos anos na Europa. Assim como o conceito de risco, de que falei no capítulo anterior, a noção geral de tradição não existia nos tempos medievais. Não havia necessidade de tal palavra, precisamente porque a tradição e o costume estavam em toda parte. A idéia de tradição, portanto, é ela própria uma criação da modernidade. (Giddens, 2003, pp. 49-50)

Aqui inserimos uma objeção. O mesmo processo psicossocial que criou o moderno também está na base da idéia de tradição, criações do imaginário no sentido em que Castoriadis (1982) o concebe como aspecto fundamental da vida em sociedade. E tal como na relação entre matéria e antimatéria não podem conviver no mesmo espaço: ou a tradição se fecha às novidades ou sucumbe, já que não pode ser moderna sem perder sua suposta autenticidade. Paradoxalmente, não convivem no mesmo espaço, mas não podem deixar de conviver de alguma forma e em alguma instância – um não existe sem o outro, pois o “novo” só existe em relação ao seu oposto.
Na verdade, estabelecer uma oposição pura e simples entre o moderno e o tradicional significa reconhecer o dualismo ocidental e, em última instância, o pensamento moderno. É o que Arendt (2007) quer dizer ao afirmar que os críticos da modernidade pensam a tradição a partir de seus termos; mal comparando, como tentar enxugar água com gelo. Nem toda tradição é uma forma de enfrentamento ao que é novo, já que pode estar associada a necessidades específicas de uma sociedade, como nos rituais em que a memória social é evocada para a atualização de simbolismos. Neste contexto a tradição se mantém sempre nova, pois não há envelhecimento onde o tempo não passa, aceitando as premissas que mitólogos como Eliade (1991) atribuem às sociedades pré-modernas. Já os modernos associam novidade ao progresso, então, parafraseando Marx às avessas, mais que filha da violência a história seria a mãe dos avanços da ciência e das técnicas. O futuro nos reserva a solução dos problemas do presente e cumpre as profecias do passado, quando o paraíso será construído pelas mãos de eleitos, sejam eles fiéis de algum Deus ou da classe trabalhadora. Não há nada de novo em tal postulado e a ironia que estamos empregando talvez contenha certa dose de exagero, mas não há como deixar de perceber que as utopias do Dezenove são modalidades de escatologia. E assim nos afastamos da boa teorização de Dupas (2006), segundo o qual o progresso se diferencia do destino por admitir a falha, o retrocesso; ou estar associado, enquanto ideologia, à ordem – como se estampa na bandeira brasileira. Com boa dose de ousadia e algum respaldo teórico acreditamos que a modernidade laicizou certas posturas religiosas, e assim o nacionalismo, as utopias, o progresso, o social, entre outras tantas faces modernas conservam suas pulsões originais. Mais que simplificação, seria simplismo afirmar que o nacionalismo é simplesmente um tipo religiosidade, mas como nos mostra Anderson (2008), não se pode negar a marca do fervor religioso no processo de criação de imaginários nacionais; o mesmo fervor que desponta nos fenômenos de multidão (Moscovici, 1990). Portanto, as forças do “atraso” podem estar na base, paradoxalmente, da criação de novos fenômenos. No imaginário social, a modernidade tem alimentado o dualismo entre o moderno e o atrasado, consolidado ao longo destes séculos e transformado em thema (Marková, 2006) e que no Brasil tem animado as discussões sobre a identidade nacional, tal como veremos mais adiante. Um exemplo que oferecemos de imediato é a Revolta da Vacina (1904), quando a vacinação se tornou obrigatória por lei na capital da República Velha. José Murilo de Carvalho a descreve em sua complexidade, numa sequência de rebeliões que relativizam o caráter “bestializado” do povo brasileiro, desde a Revolta do Vintém em 1880 (Carvalho, 1987). A rebelião contra a vacinação deixou um impressionante saldo de mortos e feridos à época e algumas perguntas pertinentes à nossa teorização: foi um movimento das massas ignorantes ou uma reação popular ao autoritarismo da medida?
Reação popular contra o avanço da sociedade sobre os corpos também é identificada por Foucault (2008) na Peregrinação de Lourdes – de resistência à medicalização da sociedade. Pelos parâmetros atuais, como nossa sociedade do “politicamente correto” interpreta os fatos, os revoltosos não seriam tão atrasados assim, já que estariam exercendo seu direito de cidadania contra medidas autoritárias. Mas o homem moderno é civilizado e assim vitupera demonstrações de violência. A multidão é primitiva, incontrolável, um resquício do passado; e assim podemos entender, na dicotomia entre o moderno e o antigo, a aversão que os teóricos da multidão possuíam pelo conceito. Ao distinguir multidão e público, Tarde (2005) acentua o caráter ilustrado e polido da atuação pública em geral, que se baseia na informação dos publicistas, da discussão em cafés e noticiário de imprensa. Com efeito, a chamada esfera pública, tão a gosto de Jovchelovitch (2000) e Habermas (1989) é um fenômeno moderno que encontra o seu oposto nos fenômenos da multidão. Moscovici (1990) assinalou o caráter depreciativo dos teóricos da psicologia das multidões, ao contrário de Durkheim, que teria percebido sua conexão com os fenômenos religiosos. O fervor das massas é antediluviano, incontrolável, e pode ser constatado no receio de suas consequências tal como Tarde o descreve. O termo mais adequado seria: irracional. Assim é que as cidades serão gradativamente remodeladas para evitar a irracionalidade e a desordem típicas das aglomerações (Sennett, 2008). A Revolta da Vacina ou os desdobramentos da Revolução Francesa guardariam, nesta perspectiva, certa semelhança com a irracionalidade do potlatch . Se o conceito de público em Tarde tem como base a dispersão das opiniões formadas no anonimado, e ainda assim compartilhadas por todos, imaginemos o que um autor do século XIX, que tinha diante de si somente a força da imprensa escrita, pensaria ao se deparar com todas as pontecialidades das mídias do século XXI! E sem ordem não há progresso, dizem os conservadores; ou se as massas não possuem objetivos claros não conseguem transformar a realidade – esta é a perspectiva mais geral da esquerda, sendo a necessidade ou não de liderança uma distinção entre correntes. Interessante é frisar, como Tarde, que a multidão não segue o líder, o líder segue a multidão; explicação para a impossibilidade de identificar “os cabeças” ou os propósitos de movimentos como a Revolta da Vacina (Carvalho, op. cit.). A psicologia das multidões não evoluiu muito além dos clássicos. Moscovici (id.) destacou o caráter renovador e catártico dos fenômenos de multidão que, em sua teorização, associado a atuação de minorias ativas, possibilita-nos comprrender a mudança social.
Retornemos, pois, ao conceito que nos interessa neste capítulo. E, para complicar ainda mais, a discussão sobre as múltiplas modernidades de Friedman (2006) – da modernidade eurocêntrica à policêntrica é sua proposta. Seu trabalho desconstrução do conceito é iniciado com a distinção entre modernidade, modernismo e modernização e a lógica é muito simples: se não há uma história linear, cada povo tem sua modernidade e seu tempo. A autora demonstra que os europeus não foram ou são pólos irradiadores de novidades de forma unilateral, pois também receberam de outros povos influências que se tornaram símbolos de modernismo (“indigenização”). E acrescentamos por nossa conta não se tratar somente de legado material – batatas, pólvora ou outro tipo de “contribuição” tão habitual nas enciclopédias. Friedman oferece exemplos bastante convincentes de que a modernização do mundo não se faz por mera ocidentalização ou difusionismo eurocêntrico. Para este novo conceito uma definição simples: o Ocidente inventa o Oriente copia – imita e distorce. Porém,
os estudiosos da cultura do quotidiano afirmaram que uma das mudanças mais profundas dos últimos 35 anos foi a forma como as pessoas hoje em dia ouvem música – caminhando de auscultadores nos ouvidos, sintonizadas num mundo muito pessoal de ritmos e letras. Dantes, a música era, geralmente, uma experiência vivida em comunidade, mas agora as pessoas podem optar pela privacidade. De onde surgiu esta forma “moderna” de experiência musical?, perguntei. “Do Ocidente”, respondeu. Não, disse-lhe. O walkman veio do Japão. (Friedman, ibid., p. 87)

Afirma, igualmente, que o ritmo frenético de vida em Xangai ou Hong Kong, entre arranha-céus e pistas de veículos, não significa ocidentalização e sim que a China exerce hoje um papel na economia internacional que já foi seu um dia. A partir de um conceito de modernidade amplo, entende que a combinação de influências recíprocas ao longo da história, criou sistemas alternativos e não um mundo uniforme. Interessante pensar que “se aceitarmos que o colonialismo faz parte da modernidade ocidental, essencial à sua formação desde o século XVI até o século XX, não devemos fechar as portas ao modernismo sem que antes as vozes criativas das colónias tenham a sua oportunidade de falar” (ibid., p. 95). Então, podemos concluir que, na perspectiva da autora, ao retirarmos seu caráter eurocêntrico o conceito revela utilidade. O lado positivo da modernidade também é declarado por Berman (2007) que, em seu segundo prefácio à obra já clássica, mostra-nos o paradaxo chamado Brasília, uma cidade erguida com ares de modernidade e que não foi projetada para incluir o povo (!). E defende os ideais que foram transformados em utopias ou metanarrativas pela abordagem pós-moderna. O lado sombrio e fragmentário do capitalismo não pode ser confundido com as conquistas modernas e a contribuição de seus principais pensadores, notadamente Marx, que a seu ver continua vivo e atual. O otimismo de Berman não pode ser confundido com o de Nisbet e as bases que legitimaram intelectualmente o eurocentrismo, como se pode observar nesta Introdução de um grande clássico das ciências humanas:
No estudo de qualquer problema da história universal, um filho da moderna civilização européia sempre estará sujeito à indagação de qual a combinação de fatores a que se pode atribuir o fato de na Civilização Ocidental, e somente na Civilização Ocidental, haverem aparecido fenômenos culturais dotados (como queremos crer) de um desenvolvimento universal em seu valor e singificado. Apenas no Ocidente existe a “ciência” num estágio de desenvolvimento que atualmente reconhecemos como “válido” [...] (Max Weber, 1981, Introdução).

Claro que se trata de uma perspectiva datada, definições para “Ocidente” e “Civilização” são hoje encaradas em sua historicidade. Para Berman, a única análise abrangente acerca da modernidade está presente na obra de Foucault, realizada sob o ponto de vista da totalidade, que a retratou, no entanto, com os ares tenebrosos das paredes dos manicômios, presídios e panópticos (Berman, ibid., p. 46). Com efeito, a crítica inflacionada ao iluminismo muitas vezes esquece a beleza de certos princípios – Sapere aude!, proclamava Kant como ideal para a Ilustração, que pressupõe a liberdade como resquisito fundamental a qualquer ousadia. Os marxistas em geral são categóricos ao afirmar que tais pérolas do idealismo encobrem interesses materiais e que a generosidade da Ilustração é a contrapartida intelectual ao avanço da burguesia. Mas atribuir aos philosophes do século XVIII todas as consequências do racionalismo não é apenas uma hipostasia; transformou-se em jargão aos críticos da modernidade. E mais, como já afirmamos, significa retirar dos processos sociais mais amplos seu sentido e os transferir às idiossincrasias de pensadores.
Curiosamente, contrariando o otimismo de Berman, regimes autodeclarados marxistas suprimiram a liberdade formal que alimentou historicamente outra representação: liberalismo, democracia e liberdade, de um lado; socialismo, centralização e autoritarismo, de outro. Uma oposição que, no auge da Guerra Fria, também se expressava na pelo confronto entre o moderno e o atraso (Dupas,2006, p. 113). E mais uma vez podemos recorrer a um princípio caro à estrtuturação dos mitos: a cada período de decadência corresponde um período glorioso, de redenção do passado (Eliade, 1972). Para fugir dos exemplos já muito utilizados no Ocidente, basta-nos ter em mente a sucessão de dinastias chinesas, na qual um rei virtuoso substitui um tirano decadente e pervertido. Mas os chineses possuem um modo peculiar de destruir o passado decadente. Os monumentos e construções são colocados abaixo, a memória não reside em blocos ou artefatos e sim na caligrafia, arte por excelência para os chineses. Os lugares de Memória de Nora (1993), que no Ocidente indicam espaços carregados de valor histórico e afetivo, têm nas escrituras ideogramáticas o seu equivalente – afirmação que chega a ser surpreendente considerando toda a tradição que se atribui aos chineses, mas feita de forma convincente por Leys (2005) ao demonstrar os muitos antecedentes à fúria da guarda vermelha maoísta. Preservar a história e desprezar a arquitetura significa que o arquiteto é mais importante que sua criação; o que é sólido se desmancha no ar, mas pode ser preservado em ideogramas – uma concepção no mínimo diferente e que tem o poder mais uma vez de relativizar o atraso. Já foi o tempo em que os chineses encarnavam o atraso; o império imóvel; gigante adormecido, entre outras metáforas pouco lisonjeiras. Mas as imagens da modernização chinesa insistem em seu caráter bizarro. Apresentamos como exemplo duas chamadas de matéria de revista de grande circulação no Brasil :

OCIDENTE MADE IN CHINA:
Clonar os países mais ricos do mundo em seu território. É a mais nova receita chinesa para construir cidades ao gosto das empresas estrangeiras e, mais ainda, dos próprios chineses.

36 BIZARRICES SOBRE A CHINA
Não é que os chineses sejam esquisitos. Apenas vão ao mercado de pijama, limpam o nariz em público e, quando resolvem virar uma potência, deixam o mundo chocado com seu jeito de pensar.

Se os chineses acham bizarras as formas como a acupuntura ou as artes marciais foram recentemente apropriadas pelo Ocidente não sabemos. Os exemplos acima se inserem numa tradição que remonta aos relatos e preconceitos de antigos viajantes ao reino celeste. Em resumo, os chineses se modernizam enquanto cópia distorcida, assim como no passado os japoneses o fizeram durante a denominada Revolução Meiji, no século XIX. Os chineses ingressam no mundo globalizado de maneira bizarra, seja por seus “costumes estranhos” ou por não aceitarem as “normas civilizadas” de competição econômica. Não respeitar patentes ou se alimentar de bichos repulsivos; manipular acessos à internet ou cuspir em público – os exemplos podem ser multiplicados apenas para mostrar que são diferentes, é o que a imprensa e seus cronistas têm feito, quanto mais agora que a China, paradoxalmente, é a grande vedete do capitalismo mundial. Uma pergunta parece saltar aos olhos, mesmo àquele que não conhecem a obra de Norbert Elias: se não participaram do mesmo processo histórico (civilizatório), por que deveriam respeitar normas de concorrência econômica que não são e nunca foram respeitadas por seus criadores?
Ao tempo das Navegações os chineses foram encarados como passíveis de conversão – e agora de modernização - mas o mundo árabe significou e significa a fronteira final do diálogo eu-outro nos termos ocidentais. Os inféis se transformaram em terroristas e representantes máximos do atraso; o fundamentalismo não apenas resiste como cresce. O raciocínio ocidental, portanto, é simples: chineses e japoneses são estranhos, mas a diferença que existe em muçulmanos os torna perigosos à existência. Tal incompatibilidade pode ser expressa de forma erudita nos seguintes termos:
Minha hipótese é que a fonte fundamental do conflito neste novo mundo não será primordialmente ideológica ou econômica. As grandes divisões entre a humanidade e a fonte principal do conflito serão culturais. Estados-nação continuarão a ser os atores mais poderosos nas questões mundiais, mas os principais conflitos da política ocorrerão entre nações e grupos de diferentes civilizações. O choque de civilizações dominará a política global. As rupturas entre as civilizações serão as frentes de batalha do futuro (apud Said, 2003, p. 42).

O profeta do juízo final se chama Samuel Huntington e criou a expressão de algum sucesso “choque de civilizações”, ou o confronto derradeiro entre o a modernidade e o atraso – poderíamos aduzir por nossa conta, entre a luz e a escuridão. A luta contra os “bárbaros” já recebeu diferentes nomes e não é nenhuma exclusividade ocidental, baseia-se em preconceitos e interesses que têm alimentado historicamente os conflitos entre os povos. Os chineses construíram no passado a Grande Muralha que agora tem nova versão na fronteira entre Estados Unidos e México. Mas como acentua Said (2003; 2007) em relação ao “orientalismo”, as diferenças são baseadas em generalizações grosseiras, criadas a partir de juízos superficiais. O outro está em toda parte e não apenas nos níveis exteriores, pode ser o vizinho ou à nação distante, mas também está dentro de cada um – o inferno é sempre o outro não importa em que número ou onde está. Ademais, na atualidade, chineses, muçulmanos e gente de diferentes etnias são visíveis nos labirintos de qualquer grande cidade, sem contar os outros criados por exclusão interna e agrupados em guetos, bandos e tribos. Não é mais possível exportar os “indesejáveis” para colônias distantes; o que explica pelo menos em parte a criação de leis que assegurem a convivência nos aglomerados urbanos. Leis, políticas educacionais e reflexões de intelectuais: não apenas sob defesa, o outro agora está na moda. A ascensão da diferença talvez referende outra perspectiva igualmente polêmica, a de que não seja possível mais falar de modernidade e sim de pós-modernidade. Referência no assunto, para Lyotard (1986) há uma ruptura visível e falência do projeto moderno, que pode ser traduzido na descrença às grandes narrativas e, em última análise, à racionalidade científica. Transformada em discurso, a busca pela verdade seria um exercício de poder, contra o qual a condição pós-moderna se rebela na pluralidade das manifestações da cultura. E a ciência não ocupa lugar privilegiado neste processo, é apenas uma modalidade a mais de compreensão e não sua instância legitimadora. A polêmica que opôs Habermas e Lyotard se fez em torno das possibilidades da razão humana em se emancipar, nos termos de Habermas, assim definida (a polêmica):
Lyotard introduz a idéia de condição “pós-moderna” como uma necessidade de superação da modernidade, sobretudo da crença e na razão emancipadora [...] Habermas, por sua vez, defende o que chama de “projeto da modernidade”, considerando que esse projeto não está acabado, mas precisa ser levado adiante, e só através dele, pela valorização da razão crítica, será possível obter a emancipação do homem da ideologia e da dominação político-econômica.

Como vimos anteriormente novas abordagens retiraram do debate seu caráter exclusivamente europeu. Portanto, não se trata de saber se a Europa vive ou não agora uma condição pós-moderna. Além das múltiplas modernidades definidas por Friedman (op. cit.), aqueles que historicamente foram “outros”, objeto de estudo, inserem em suas análises um dado novo: a colonialização como elemento decisivo da modernidade. Tradicionalmente, desde o século XIX, a modernidade é pensada como criação européia, por ter criado diferenciais ou vivido processos históricos exclusivos se comparados a outros povos, como a ciência, a urbanização, a Reforma e o humanismo, entre outros. Autores como Dussel (2005, 2007) e Mignolo (2003) afirmam que somente as riquezas do Novo Mundo permitiram o “salto” europeu. Não apenas pela prata que lhes permitiu acesso ao mercado asiático e mercadorias que não tinham como produzir, pois é o enriquecimento das cortes irá financiar os luxos – “as chinesices” – e a consolidação dos Estados-nação e seus exércitos, como também pela produção de alimentos que acompanharia o crescimento da população européia . Portanto, nesta vertente, o dado fundamental da centralidade européia no período é a colonialidade; o discurso da modernidade deve, então, incorporar ou levar em conta pelo menos os saberes subalternos, para utilizarmos a expressão de Mignolo (id.).
Mais instigante ainda a perspectiva de que a modernidade seja apenas um tipo de engenharia simbólica, uma criação legitimadora de processos sociais complexos, como se entende da obra de Latour, cujo título é uma tese: Jamais fomos modernos (1994) . Tanto a modernidade como a sua superação, a pós-modernidade, baseiam-se na aceitação do “trabalho de purificação” a distinguir humanos e não-humanos – que poderíamos “traduzir” simplesmente pela oposição entre cultura e natureza, um thema clássico. É possível ir adiante com nossa “tradução”, identificando de imediato essa expressão de nosso agrado, engenharia simbólica, que contém simultaneamente o aspecto criativo do termo engenho e a precisão das engenharias da ciência. A engenharia moderna foi construir um edifício de símbolos capazes de classificar e ordenar o mundo.
Em outra obra Latour (2002) nos oferece um bom exemplo capaz de tornar mais palpáveis tamanhas abstrações. Somos modernos porque não acreditamos em fetiches – palavra que oferece na etimologia e evolução uma aula de história da dominação. Os idólatras acreditam em fetiches, que artefatos produzidos por suas próprias mãos sejam sagrados, como os nativos da África Ocidental (Latour, ibid., p. 15). Não é somente uma questão de sacrilégio, mas também de ignorância, pois na lógica do conquistador somente bárbaros seriam incapazes de perceber que objetos humanos não podem ser divinos. Mas se não há diferença entre os ícones portugueses e os ídolos guineenses, a não ser no discurso, todo o resto é imposição. E logo no Prólogo desta obra de Latour há um interessante relatório de autoria de um conselheiro coreano em missão na China e que expressa o mesmo estranhamento:
Diz-se que os povos de pele clara que habitam a faixa setentrional do Atlântico praticam uma forma particular de culto às divindades. Eles partem em expedição a outras nações, apropriam-se das estátuas de seus deuses, e as destroem em imensas foqueiras, conspurcando-as com as palavras ‘fetiches! fetiches’, que em sua língua bárbara parece significar ‘fabricação, falsidade, mentira’. Ainda que afirmem não possuir nenhum fetiche e ter recebido apenas de si próprios a missão de livrar as outras nações dos mesmos, parece que suas divindades são muito poderosas.

Não temos a pretensão de realizar uma análise bibliográfica exaustiva sobre a modernidade; o que é interessante do nosso ponto de vista é não só a intensificação dos debates, como seu significado. Os modernos declaravam que sua civilização era um guarda-chuva sob o qual se abrigavam todos os povos – e talvez o nome deste guarda-chuva seja razão, instrumental ou emancipatória, tanto faz, o eurocentrismo é o mesmo. A oposição entre modernos e pós-modernos expressa a crise e o remorso de sociedades que confiavam cegamente nos seus ícones, como a razão, a civilização, a liberdade, entre outros tantos deste edifício chamado modernidade. A intenção de reformá-lo ou demoli-lo significa mais que uma controvérsia entre intelectuais. O fato de se discutir tanto o conceito pode significar que a ruptura de suas bases está em curso ou então, simplesmente, que se trata de falso dilema e neste caso a modernidade sequer teria existido, a não ser como discurso autolegitimador. Curiosamente, não deixa de ser uma metanarrativa a crença de que um conceito possa explicar tanta coisa e que agora simplesmente expirou sua validade. Durante o período moderno teriam sido criadas as bases sociais, econômicas, políticas e intelectuais que até hoje permeiam as instituições, os costumes, o imaginário e as representações sociais do mundo ocidental. Um modo de vida que se disseminou de forma sutil ou violenta – não de forma unilateral, é verdade – capaz de fascinar a uns ou se impor a muitos outros povos.
Não nos parece que a emergência de nações como Índia e China deem respaldo a tese das múltiplas modernidades. O fato de ter sido o Japão a lançar o telefone celular ou que em Shenzhen se localize o maior polo de fabricação de gagdtes do mundo (Agtmael, 2009) não os torna modernos ou indica que tenham destruído suas tradições. Giddens (2003) nos preveniu quanto ao uso mecâncio da idéia de tradição – espécie de fundo de pureza original de culturas oprimidas. E é radical a respeito: toda tradição é inventada. A perspectiva tradicional, segundo a qual o Ocidente disseminou e impôs unilateralmente sua cultura mundo afora pode ter certa dose de ingenuidade ou mesmo de ideologia; mas relativizar tal pressuposto tem limites. Ao longo do período ocidental dito moderno um modo de ser e viver foi consolidado e tornou-se capaz de interferir em qualquer canto remoto do planeta, mesmo que indiretamente. As alterações climáticas estão aí para referendar nossa assertiva: um problema em escala global criado ao longo da industrialização. É inegável que este “modo de vida” se impôs como referência mundial, mesmo que sua criação não seja inteiramente ocidental e ainda que se leve em conta as especificidades – as combinações e apropriações locais – existe uma lógica comum aos mecanismos que, em conjunto, caracterizam a modernidade. Se o walkman “veio” do Japão pouco importa, a invenção é parte da dinâmica econômica do sistema; ou, na atualidade, pouco importa o regime polítco chinês, inteiramente submetido à lógica da reprodução do capital internacional. Os exemplos podem ser de outra ordem, de natureza política ou social entre outros, mas o essencial é a existência de fatores que servem de substrato a processos tão gerais e em escala global. A modernidade, portanto, une tais fatores no mesmo sistema que não é privilégio desta ou daquela nação; e ao abranger um período de tempo tão longo pode ser subdividido, como o fazem autores aqui citados, Giddens (2002) e Dussel (2007), por exemplo. Um constructo que emerge da observação de situações que possuem lógica própria, mas que se relacionam claramente à construção da hegemonia ocidental nos últimos séculos. Aceitar o “roubo da história”, para usar a expressão que estampa a capa do interessante livro de Goody (2008), não diminui o feito do “ladrão”, que foi capaz de legitimar seu “crime” ao apagar as provas contrárias. Mesmo que aceitássemos as múltiplas modernidades ou o papel decisivo da colonialidade, ainda assim temos que concordar com Giddens (1991) de que se trata de um projeto europeu.
Os modernos reescreveram sua história no século XIX, buscando as origens adequadas e eventualmente incorporando as “contribuições” de outros povos. Para a grandeza imaginada dos ocidentais, os fenícios, chineses, turcos, entre outros povos, tinham que ser eclipsados da história. O fato de enxergarmos com clareza tal projeto de autolegitimação pode ser uma evidência de que não estamos mais engajados nele, independentemente do conceito que os teóricos ofereçam, seja a modernidade tardia de Giddens (2002) ou a pós-modernidade de Lyotard (1986). Assim como o feudalismo, a modernidade não é um fenômeno universal (Goody, ibid.), embora seja característica desta a expansão continuada de sua esfera de influência. O fato de utilizarmos até agora expressões como “lógica própria” e “instituições pensam” (Douglas, 1998) não significa que as demais instâncias da vida humana sejam simplesmente determinadas por estruturas impessoais e muito menos universais.
A relação entre o global e o local está no centro dos atuais debates que envolvem a globalização – a nova cria da modernidade. As especificidades não podem esconder as ligações mais gerais, as conexões que se tornaram praticamente óbvias ao longo do tempo. O Estado-nação, por exemplo, é um tipo de organização social e política que assume contornos diferentes em cada localidade e a ciência política dispõe de muitas categorias para descrevê-lo, em função do regime ou da forma de governo e, ainda assim, será um Estado-nação – um espaço delimitado, uma comunidade imaginada em termos identitários que dispõe de governo e autonomia. Mas não há como fugir da impressão de arbitrariedade em relação aos estudos de modernidade. Algumas perguntas se impõem diante de sentenças lapidares: De quem se fala? Quando? Quem fala?
A modernidade líquida de Bauman (1998, 1999) se torna gasosa ao tentarmos “pegá-la”; sentimos vontade de aderir ao seu raciocínio envolvente, mas não sabemos exatamente a quem ele se refere, se suas reflexões incluem a nossa banda de mundo. A pós-modernidade trouxe a insegurança e oferece em troca a solidão dos shoppings e comunidades virtuais, afirma o sociólogo – uma análise que parece pertinente a qualquer grande centro urbano. Subitamente, nós que nunca fomos modernos, somos admitidos pela porta da frente à nova engenharia simbólica em curso. Entretanto, se a modernidade foi um projeto europeu, nem todos estão dispostos simplesmente a adentrar o novo edificio. O panorama da pós-modernidade não é promissor e a nostalgia dos téoricos utiliza de tons sombrios para descrever o presente, o que não chega a ser novidade em termpos de crise ou transição .
Há uma tradição historiográfica, denominada iluminista e bastante criticada nos últimos tempos, que considerou os séculos posteriores à queda do império romano como um período de atraso, a chamada Idade das Trevas. E que no século XV-XVI, o Renascimento teria resgatado o homem para o centro da história, recolocando-o no moldes da tradição greco-romana. Faz parte das lições escolares ensinar que as Navegações, a Reforma, a Reurbanização, o Capitalismo e as Invenções são diferenciais europeus, os fatores que explicam seu caráter pioneiro no mundo moderno. A historiografia recente lança sérias dúvidas quanto ao pioneirismo ou a relevância de tais fatores. Não cabe aqui um aprofundamento, mas é possível demonstrar com facilidade e com base em bibliografia, que em relação às navegações os chineses foram os reis dos mares até o século XV, com direito a Marco Polo, nas peregrinações de Faxian; cronistas como Ma Huan e seu herói, Zhen He (Fernández-Armesto, 2009). Se a Reforma trouxe um ingrediente a mais nos conflitos europeus e algumas contribuições insuspeitas como a tradição hermenêutica, afirmá-la como diferencial é renegar o papel dos católicos ao longo dos tempos modernos. Existe, sim, o peso do clássico weberiano que inclui a ética protestante como base do sucesso do capitalismo americano (Weber, 1981). Mas o Ocidente conheceu o “atraso” medieval enquanto as cidades turcas e chinesas resplandenciam e mesmo o caráter estático europeu tem sido posto em xeque. Chiara Frugoni (2007), por exemplo, apresenta-nos uma relação de invenções da Idade Média até hoje fundamentais às nossas vidas – óculos, vidros coloridos, botões e outras tantas, que desmitificam a idéia de que o Renascimento inaugura um tempo de grandes invenções. Moscovici (1990) utilizou os reformadores como exemplo de minorias ativas, mas o desdobramento dos fatos acaba por relativizar seu caráter revolucionário. Basta-nos citar a posição de Lutero na revolta camponesa de 1524, sua condenação ao movimento e a consequente institucionalização do luteranismo (Falcon, 2000, p. 42); ou, ouvir as considerações de Jean Delumeau:
E de início seria errado imaginar a Reforma como um corte completo com o passado religioso dos séculos que a precederam, e também acreditar que os países protestantes não se inspiraram nas obras de espiritualidade publicadas no mundo romano do século XVI. (Jean Delumeau- 2, 2003, p. 335)

É possível, portanto, descaracterizar a ruptura moderna tão simplificadamente esboçada pela tradição. Há reflexões sofisticadas como os conceitos de territorialismo e capitalismo, com os quais Arrighi (1996) tentou explicar a dinâmica moderna – os ciclos de acumulação sistêmica. Grosso modo, servem para distinguir a lógica de acumulação de territórios em contrapartida à de acumulação de riquezas. Também Kennedy (1989) destacou a geopolítica como diferencial: estados beligerantes e que não se submetiam à centralização é sua explicação para o dinamisno europeu. Independentemente da possibilidade de isolar causas que expliquem a ascensão européia, o fato é que houve a imposição de uma hegemonia. Mas não a hegemonia ou a liderança de nações isoladas de que se ocupam tais autores e sim a expansão e consolidação de uma visão de mundo ou mentalidade, como se dizia na terceira geração dos annales. O conceito de hegemonia tal como formulado por Gramsci implica em dominação não apenas pelos mecanismos de subordinação econômica ou pela força das armas, como também por mecanismos sofisticados da cultura – ou superestrutura, nos termos do autor (Gruppi, 1980). É um conceito aplicado originalmente à luta de classes e nos termos marxistas tradicionais a dominação entre nações, o imperialismo, é econômico e militar. A idéia de hegemonia que transcende a pura coerção maquiavélica, entretanto, revela-se heurística ao ser aplicada aos sutis mecanismos do relacionamento entre os povos. Digamos uma hegemonia que se faz em rede, que aceita o caráter difuso das relações de poder, mas sem a ingenuidade de acreditar que os envolvidos estão em pé de igualdade. O que nos interessa precisamente são as instituições criadas na modernidade e que se tornaram hegemônicas, capazes de serem imaginadas como modelos adequados e desejadas em diferentes contextos sociais. Portanto, desejo e imposição; senão vejamos:
Um estilo de civilização. Ser moderno é sinônimo de civilizado, de agir e pensar em conformidade com padrões estabelecidos por uma etiqueta social. Um bom cristão, educado e polido – que se fez na sociedade de cortes; nas palavras de Erasmo: “falhar na educação é fazer do ser humano um monstro” (Erasmo de Rotterdam, s/d, p. 32). Aliás, o conhecido representante do pensamento renascentista recebeu atenção especial de Elias (1993) em sua análise sobre o processo civilizador. Interessante constatar em De Pueris polêmicas que nos são familiares, alguns exemplos: “Paternidade não se reduz aos atos gerativos”; “Riqueza não dispensa instrução”; “O direito à educação nasce no berço”; “Não confundir educação com afetação” (Erasmo de Rotterdam, ibid., sumário). Muitas das linhas gerais do que entendemos por educação na atualidade estão claramente formuladas em seu manual do século XVI. As bases morais da sociedade, tão caras ao pensamento de Durkheim , econtram em Erasmo um ancestral.
O inventário de Elias (ibid.) nos mostra o surgimento de um padrão europeu derivado dos rituais da sociedade de corte. Enquanto Anderson (2004) se preocupou em retratar as lutas políticas e as intrincadas linhagens do Estado absolutista, Elias procurou observar como tal configuração do poder institucionalizado tem como contrapartida a criação de hábitos e transformação de costumes. A concentração de poder nas mãos de príncipes é o resultado da “domesticação” de uma nobreza guerreira, que se tornou dependente do Estado. Foram-se os tempos de belicosidade do cavaleiro medieval, sequioso por conquistas e glórias...

3. Considerações finais
As discussões sobre modernidade e pós-modernidade ganharam destaque nos últimos anos por conta das transformações que assistimos em praticamente todos os segmentos da vida em sociedade. A consolidação de um padrão de vida civilizado representou, na prática, a criação de um “outro” não-civilizado – exótico, bárbaro, primitivo, atrasado – não importa o termo, pois na prática este “outro” podia ser dominado, eliminado ou escravizado. As cruzadas que se realizaram em nome da Cruz se transformaram nas muitas guerras travadas em nome dos ideais de civilização e progresso. A sofisticação dos discursos, das mercadorias ou ainda a potência das armas tornaram o referido padrão um modelo a ser copiado e seguido, quando não, imposto. No limite entre a argumentação ideológica e o cinismo, aqueles que foram exterminados ou escravizados deveriam ser gratos aos seus opressores. Na atualidade, a emergência do “outro” é visível na nova configuração de poder mundial, que enseja abordagens e pesquisas instigantes e demolidoras de velhos preconceitos.

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